“Terra Estrangeira”

Fui convidada para pensar, junto com os dois sócios da galeria Tryzy, em Portugal, e xs artistes convidades, uma exposição coletiva sobre o processo de migração. Como migrante em país estrangeiro, achei esse convite em total acordo com minhas vivências e pesquisas. Segue o texto que escrevi para a exposição e meu muito obrigada a tds que participaram. E um obrigada a bela Lisboa.

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“A exposição coletiva “Terra Estrangeira”, com 9 artistas brasileiro.a.s que migraram para Portugal, propõe reflexões sobre a experiência de alteridade diante de outra cultura. Sair de seu país de origem é um movimento entre a dor e o prazer. Mesmo com as óbvias semelhanças entre Brasil e Portugal, começando pela história comum e a língua compartilhada, existe um movimento de encantamento e desgaste entre achar as semelhanças e descobrir as diferenças.

Convidamos cada artista para apresentar seu olhar frente ao seu novo espaço em diálogo com suas questões pessoais e suas trajetórias artísticas, e tendo como base a vivência de uma pandemia e o desgaste político brasileiro que cresce desde 2018. Assim como no filme homônimo do diretor Walter Salles, queremos pensar o conceito de migração como forma de deslocamento relacionado com o espaço não apenas como lugar geográfico mas, sobretudo, como espaço habitado. A perda da sensação de pertencimento que gera a errância, também gera uma procura por novos afetos.

Na psicologia ouvimos muito que é somente diante do outro que reconhecemos nossa identidade, que nos reconhecemos ocupando o nosso lugar (único) no mundo. Cada artista trilha seu caminho nessa busca pessoal por se reencontrar em um território estrangeiro. Bruno Veiga, Daniel Mattar, Francisco Baccaro, Luiza Baldan, Marcelo Tabach, Maura Grimaldi, Pedro Escobar, Tatiana Ferreira Lima e Thales Leite, trabalham questionamentos por caminhos distintos como a solidão, o não-pertencimento, o detalhe, as interações, a releitura, a desconstrução, o entre, a natureza, o corpo e o espaço.

Dentro dessa abordagem, convidamos o coletivo IANDÉ, baseado na França, para apresentar uma projeção, com curadoria de Glaucia Nogueira, do.a.s fotógrafo.a.s Andrea Eichenberger e Shinji Nagabe que migraram para França.

As obras aqui expostas existem diante de novas referências, quebrando os limites e as fronteiras que na arte nunca deveriam existir.

ioana mello”

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Informações:

Exposição Terra Estrangeira

Local: Galeria Tryzy

Rua Maria Fonte, 54, Anjos, Lisboa.

Horários: de quarta-feira a sexta-feira, 14:30/19:00 hs e sábado de 16:00/20:00hs.

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Entre a Bretanha e Floripa

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Em sua terceira edição, o festival BZH PHOTO, criado pela curadora Camille Gajate, se propõe a criar um diálogo entre olhares. A cada ano, um.a fotógrafo.a de alguma região litorânea faz uma residência de 20 dias no norte da Bretanha, na cidade de Loguivy de la mer, na França. O resultado da residência é exposto no porto da cidade, ao ar livre, em pleno diálogo com a paisagem, a cultura local e o público que passa. Aliás, o festival é feito com o público, os moradores da cidade, em um belo exemplo de coletividade. A pequena cidade costeira vira um museu a céu aberto, e a programação ainda conta com projeç˜ões noturnas pela cidade além de aparições em outros festivais.

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Esse ano o festival recebeu a fotógrafa brasileira Fernanda Tafner que trouxe referências da terrinha para criar a série “Songe”. Segunda a curadora e diretora artística do festival Camille Gajate,

“com uma poesia própria, misturando tons de cinza, a fotógrafa distancia seus temas da realidade, estimula nossa imaginação e oferece a todos a possibilidade de reconstruir com ela esse território que nos cerca. Em sua nova série “Songe”, Fernanda nos convida a sonhar”.

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Originária de Florianópolis, Fernanda tem um processo muito sensível de fotografar. Ela se prepara teoricamente antes do ato fotográfico em si, buscando inspiração na poesia, artes plásticas, literatura, desenho, etc. Seus cadernos de anotação são obras em si. Para a residência do BZH PHOTO, Fernanda buscou inspiração em artistas brasileiros que trabalham a arte misturada à vida e à natureza como Helio Oiticica, Ligia Clark e o italiano Giuseppe Penone.

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Fernanda é muito ligada aos detalhes, nos pequenos gestos que abarcam maiores e mais profundos significados. Para o festival, ela trabalhou também os tons – do P&B aos tons azuis e avermelhados – talvez numa relação sensível ao visual de sua estadia na região.

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Tive o prazer de participar do último fim de semana do festival, depois de 2 meses de duração. No meu segundo ano de visitação, continuo maravilhada com a paisagem e com as imagens que se mesclam aos barcos atracados e ao vento que sopra forte na região. O sistema de montagem é todo pensado para haver a maior interação possível entre natureza e arte, inclusive com uma foto exposta dentro da água. E continuo a me espantar, bobamente, como os olhares podem ser tão diferentes. Comparo as imagens de Fernanda com o fotógrafo sueco, Martin Langen, que expôs ano passado, e teço minhas comparações subjetivas. É incrível ver como esses diálogos entre culturas s˜ão interessantes e frutíferos.

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Fotografia e materialidade, sobre o Salon Approche

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Fora de época, por causa da Covid, o Salon Approche 2020 aconteceu finalmente em maio 2021 em 3 galerias parisienses. Criado por duas jovens mulheres, Emilie Genuardi e Elsa Janssen, o salão se define como um lugar dedicado à experimentação da mídia fotográfica. Em sua quarta edição, a crítica de arte e curadora Léa Chauvel-Lévy e o curador Tristan Lund privilegiaram a relação da fotografia com a arte contemporânea e convidaram 17 artistas de vários países e gerações (sempre representados por uma galeria) para exporem.

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Foi muito interessante sair de um período de confinamento e cair no meio das exposições do Approche. Depois de passar mais de ano vendo imagens planas no mundo virtual, foi incrível reiniciar o presencial com trabalhos tão ligados à matéria. Ver texturas, reflexos, jogos de planos e de materiais ao vivo, foi uma experiência quase única. Apesar do meu amor pelo online, não existe relação mais gostosa do que a proximidade com a obra. E com os artistas!

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Um dos trabalhos expostos era a série Zilberbeek (Silver Creek) do jovem fotógrafo belga Lucas Leffler, exposto pela Galerie Intervalle. Uma grande experimentação fotográfica feita a partir da lama deste tal riacho de prata. A história começa em 1927, quando descobrem toneladas de prata descartadas nesse riacho belga por uma fábrica que produzia para Kodak e Fuji. Lucas descobriu um antigo artigo de jornal da época e resolveu visitar o lugar. Além de fotografar o cenário e o entorno do rio, Lucas resolve ele mesmo extrair a lama e imprimir imagens nesse suporte.

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imagens do site de Lucas Leffler
imagens do site de Lucas Leffler

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“Lucas Leffler amplia suas possibilidades plásticas indo além da fotografia plana. Ele experimenta como uma tentativa de reativar uma materialidade perdida, de restabelecer um processo de trabalho físico em torno da imagem fotográfica ou de criar relações entre sistemas de reprodução analógica e digital e entre a fotografia e a pintura. O artista, aliás, produz imagens únicas, não reproduzíveis”, relata o curador belga François de Cuninck.

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Para o querido fotógrafo Luiz Baltar, o trabalho de Lucas se desdobra em outras questões, como a dos acúmulos e apagamentos na paisagem contemporânea. Eu gosto da ideia de ter uma imagem contemporânea impressa em um tanto de lama artesanal, que carrega acúmulos naturais e também da própria história da fotografia.

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Algumas reflexões sobre o trabalho “Ensaio para avançar ao início*”, da fotógrafa Fernanda Tafner

*Essai pour avancer vers le début, imagem de capa do kit de imprensa ©Fernanda Tafner

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Nesse ano que nos obriga a rever nosso olhar, e estar sempre se reiniciando de inúmeras maneiras, foi interessante descobrir a série da fotógrafa brasileira Fernanda Tafner: “Ensaio para avançar para o início”. Fruto de uma residência ganha pelo Centre Tignous, em Montreuil na França e feita junto a duas creches francesas, Fernanda resolve relacionar o seu olhar de artista com os olhares das crianças. Os objetos fotografados fazem parte do universo infantil: brinquedos, nuvens, objetos musicais…

Além disso, Fernanda faz uma ponte com o poeta Manoel de Barros e suas poesias sobre a infância. “Eu queria tentar um retorno, como uma espécie de reconexão com esse estado primitivo de existência, tão cara a Manoel de Barros”, relata a artista. Além das fotografias, sua exposição também nos apresenta instalações interativas para ajudar o público a adentrar o universo infantil.

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foto do kit de imprensa ©fernanda Tafner
foto do kit de imprensa ©Fernanda Tafner

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Entre fotos feitas em estúdio de objetos recorrentes da creche e imagens feitas em ateliers pelas crianças com a artista, a exposição é colorida, e faz lembrar um jogo de tabuleiro. Vemos bonecos de plástico em grande escala, quase do tamanho das crianças, nuvens para pisar, e caixas sonoras no chão, e se deixarmos entramos facilmente no universo lúdico e sensorial das crianças. Mas é impressionante como é difícil pausar, se despir das certezas, da correria e se deixar capturar.

O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vem de minhas percepções infantis. – Manoel de Barros

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Colagem feito pelas crianças com a artista – foto do kit de imprensa ©fernanda Tafner

Em tempos difíceis como estes que estamos vivendo, quem tem o privilégio tem tentado parar, pausar e redescobrir caminhos. O jeito que estávamos avançando não é mais possível, nem hoje e muito menos amanhã. A série da artista Fernanda Tafner ressoou em mim como uma tentativa de zerar tudo – voltar para o início – e procurar outros meios de dialogar com esse mundo de hoje, de uma maneira mais correta talvez. A curadora Angela Berlinde resume bem sobre a série quando diz que a artista ousa criar um espaço onde o imaginário é apresentado como um jogo onde ela se deixa enredar e tenta interpretar os limites entre a experiência e a contemplação. E com ela, “somos convidados a inventar novos começos”.

*a exposição *Essai pour avancer vers le début, de Fernanda Tafner, exposta no Centre Tignous, em Montreuil, deve ter uma bela finissage após o desconfinamento francês.

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Cindy Sherman como um espelho da nossa sociedade

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Nesse ano conturbado que estamos vivendo, é um luxo poder ver a retrospectiva do trabalho fotográfico de Cindy Sherman na Fondation Louis- Vuitton, apesar dos meses de atraso. São 4 andares, muito bem montados, com impressões perfeitas, onde vemos tanto imagens pessoais de acervo próprio como sua primeira série em P&B – Untitled Film Stills – seus grandes formatos mais recentes ou ainda seus autorretratos do instagram em tapeçaria. Um longo trajeto pelos 50 anos de uma carreira que começou no fim dos anos 70 e que continua bastante movimentada até hoje. Com raríssimas exceções, o tema é sempre o mesmo: o autorretrato.

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A artista é tudo: modelo, maquiadora, cenógrafa, técnica, atriz, iluminadora e fotógrafa. Como na mágica, ela tem total controle sobre seus truques e o que ela deseja apresentar ao público. Perucas, maquiagem, cenários, fantasias criam um ambiente cada vez diferente e transformam a artista em diferentes personas. Entre realidade e ficção, ela incarna poderosos e complexos personagens do nosso cotidiano. Somos confrontados a pessoas que cruzamos, ideias preconcebidas: um pouco de nós mesmos.

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Nós espelhados nela

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Suas imagens são calculadas e fabricadas de acordo com a decisão da artista. Ela passa pelo imaginário do cinema, da pintura clássica, dos contos de fadas, da moda, da sociedade, do feminino e do masculino, das mídias sociais. Ela desconstrói os arquétipos, brinca com os códigos, distorce as certezas. Como sua série “Untitled Film Stills” de 1977 onde ela se representa como heroínas de filmes fictícios dos anos 50 e 60. Ela chama atenção para o papel da mulher na mídia e da mulher diante do olhar masculino. O desejo sexual e a dominação, a modelagem de uma identidade de acordo com a cultura de massa, essas são algumas críticas de Sherman. Seu trabalho é uma conversa direta com a nossa sociedade de consumo intenso e de proliferação da imagem.

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Não é à toa que ela entrou de cabeça no instagram, como já havíamos mostrado aqui no site. Diferente de seu extenso cuidado com as fotos em estúdio, o instagram de Sherman é mais simples, com imagens do dia a dia, banais, e uso de muitos efeitos. Usando de muito exagero, ela afirma em sua conta online que nunca somos nós em nossos selfies. Os papéis, os personagens e as aparências que tomamos nas mídias sociais somos nós mesmos que impomos e realizamos, nos transformando. Assim como ela ao longo de seus trabalhos. Mas a maior ironia disso tudo é que nem percebemos.

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Cindy Sherman soube envelhecer muito bem. O autorretrato pode ser uma maneira bastante agressiva de acompanhar o seu próprio envelhecimento. Mas ela soube incorporar suas rugas em seus ensaios, e com um certo humor, usar isso em seus novos personagens. Além disso, percebeu muito bem as novas mídias de auto – representação (o instagram e os selfies) e se apoderou, trazendo suas discussões para questões contemporâneas.

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