Último post do mês e resolvi continuar no tema da memória, mas dessa vez a relacionando ao esquecimento. Para lembrar é preciso esquecer. O sentido que se deseja dar à própria vida não é dado a partir do todo, mas através da seleção de certos detalhes relevantes para o que se quer criar. Não devemos tratar de maneira negativa o esquecimento, muito pelo contrário, lembrar de tudo é que seria caótico, como nos descreve Borges através de seu personagem Funes, o Memorioso.
Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos. – Jorge Luís Borges
Rosangela Rennó
Nosso mundo atual tem cada vez mais dificuldade de esquecer. Vivemos uma espécie de obsessão pela memória, que é apontada por diversos autores e pode ser vista no desenvolvimento de mais centros de memória, arquivos digitais, aumento das memórias dos aparelhos tecnológicos, restauração e revitalização de centros históricos, produção de documentários, ampliação de museus e instituições, criação de mais ambientes para armazenar, gravar e catalogar.
Nesse mundo tecnológico, de abundância de imagens, vivemos uma nova forma de produzir e consumir memória. O alto número e a praticidade das câmeras móveis nos bolsos de todos acaba funcionando como um meio de se aumentar o armazenamento de lembranças passadas, assim como de diminuir a necessidade de se lembrar.
Fotografamos as coisas para expulsá-las do espírito. – Kafka
Ioana Mello, 2014
Um estudo americano da Universidade de Fairfield, demonstrou que as pessoas que observam antes de fotografar se lembram melhor dos detalhes do objeto fotografado uns dias depois. A conclusão do estudo foi que fotografar ajuda a memória mas apenas se a pessoa parou para olhar além da imagem e desenvolveu uma interação com o objeto fotografado ou a cena em questão. Caso contrário, a pessoa esquece mais facilmente. Linda Henkel, chefe do estudo, aponta para o paradoxo da questão: com o enorme número de fotos digitais disponíveis, e seu espaço de armazenamento, temos mais meios para ajudar a memória, mas acabamos com uma certa preguiça em acessar as lembranças ligadas a essas imagens, e esquecemos. Não adianta mecanicamente registrar um enorme número de imagens de viagens, museus, pessoas e jantares: para lembrar, é preciso estar presente.
Semana passada falamos sobre o ato de lembrar, e a construção de uma história comum através da documentação de uma memória. Gostaria de permanecer nesse tema, e discutir mais o papel da fotografia na preservação de nossa memória.
Que a fotografia salve do esquecimento as ruínas decadentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma irá desaparecer e que pedem um lugar no arquivo de nossa memória. – Baudelaire, 1959
Eugene Atget, Cour, 41 rue Broca, 1912
A fotografia, como já discutido aqui, tem uma forte relação com o documental. Dizem que através da foto, a memória do passado estará aprisionada na imagem, nos possibilitando relembrar para sempre, cada vez que nosso olhar cruzar a imagem em questão. Mas no fundo, esse memória fotográfica não é tão objetiva assim.
Freud fala da memória como essencial ao processo psicanalítico. Resumidamente, a memória para ele se organiza por superposição de camadas, como em um processo de estratificação, onde a nova memória não apaga a outra mas se sobrepõe. Assim, nossas memórias seriam múltiplas, em constante transformação através das novas experiências que vivemos, dos relatos que ouvimos ou imagens que vemos. Nós teríamos uma capacidade ilimitada de receber novas percepções, e como um bloco mágico, histórias presentes se inscrevem por cima de fatos passados.
Alfred Eisenstaedt, 1945
A fotografia aparece como uma memória passada no tempo presente, um resgate. Porém enquanto documento de uma lembrança passada, ela não é um detalhe objetivo. Muito pelo contrário, ela é um diálogo entre o nosso olhar presente, alterado de lembranças superpostas, e a imagem passada.
Diante da imagem, o sujeito não olha apenas para o mundo, mas também olha para si mesmo. O olhar não vai unicamente em uma direção: ele passa pela superfície e, em seguida, atravessa de volta para o sujeito. Ele vai do passado para o presente e vice versa. – Camille Bonnefoi
Vulgo, Rosângela Rennó, 1998
A FOTOGRAFIA NÃO ATESTA NADA E ATESTA TUDO.
A fotografia enquanto documento de um passado não é verdade única. Como já vimos antes, o olhar, do fotógrafo e do observador, nunca é inocente!
A performance tem sua origem nos atos futuristas e dadaístas do início do século XX. Nos anos 50, se mistura ao action painting: quando os artistas começam a ter uma liberdade de ação na criação. Jason Pollock, Kasuo Shiraga, Yves Klein e Nikki de Saint-Phale, por exemplo, demonstram seu processo criativo através de performances. Existe um anseio de sair das salas apertadas do museu e criar um laço mais próximo com o público. Essas primeiras performances ainda eram voltadas para um resultado final específico: a pintura em si.
É apenas nos anos 60, a partir da arte conceitual, que a performance ganha notoriedade. Ela vai discutir importantes conceitos como os limites do corpo e da mente, a interação da arte e artista com as pessoas, a reação do público… A performance passa pela improvisação, interação, ação e reação, espaço e tempo da arte e do mundo. É uma nova mídia que permite experimentar com o corpo, o movimento, o som, o espaço e o tempo. E sobretudo interagir sem a quarta parede do teatro ou as amarras da pintura e do cubo branco da galeria e do museu.
Mas como vender o invendável por natureza, o imaterial, visto que a performance é para ser efêmera?
A fotografia foi uma maneira de documentar o trabalho performático e vender para colecionadores algo material e que trouxesse o conceito de raridade: com certificado, qualidade técnica e edição limitada. Mas as fronteiras se mesclam entre as artes e vão além da pura documentação. Alguns artistas performáticos, por exemplo, trabalharam anos com o mesmo fotógrafo, como Gina Pane e a fotógrafa Françoise Masson. Aqui a relação acaba sendo tão próxima entre os artistas que as duas mídias, através de seus caminhos específicos, resultam em uma representação sensível.
Ou ainda, de uma outra maneira, fotógrafos como Harry Shunk e János Kender que entre os anos 50 e 70 fotografaram imagens intensas do desenvolvimento da arte performática na Europa e EUA. Eles trabalharam com Niki de Saint Phalle, Claes Oldenburg, Jean Tinguely, Merce Cunningham Dance Company, Alan Kaprow, Yayoi Kusama, Robert Rauschenberg e Andy Warhol. Aqui é a fotografia que escolhe como tema a performance.
Yayoi Kusama, the Anatomic Explosion, Brooklyn Bridge, NY, 1968- Shunk-Kender
Mas a relação entre fotografia e performance consegue se estreitar ainda mais quando o fotógrafo vira performer e usa a imagem como meio de auto-representação. Nesse processo, o artista encena uma ação cujo resultado é dado a conhecer ao público apenas pelo meio fotográfico. Um caso bem conhecido são os falsos stills de Cindy Sherman. A fotógrafa se fantasia para representar modelos femininos associados à cultura contemporânea capitalista: estrelas de cinema, donas de casa… Ela performatiza experiências comuns entre as mulheres ocidentais.
Untitled film stills, Cindy Sherman, 1977
A fotografia, com sua estreita relação ao real, é também uma mídia interessante para brincar com a interação do público, a improvisação, o espaço e tempo da arte e do mundo. A fotografia possibilita reinventar papéis e narrativas, além de verdades.
Falar de uma arte africana é complicado, a África engloba 54 países com histórias e culturas diferentes. No norte do continente, por exemplo, existe uma influência árabe, já na parte sub-saariana existe uma forte influência tribal. É difícil falar de uma mesma arte para tantas narrativas.
Fora do continente, a fotografia africana tem pouco espaço. O público internacional em geral tem uma certa dificuldade em acessar e as vezes também em entender o contexto dessas imagens. Muitos artistas contam histórias distantes da nossa realidade, que não conhecemos ou não compreendemos totalmente. Mas aos poucos estamos tendo mais acesso: a arte africana começa a aparecer pelo mundo em exposições, feiras e prêmios e seus artistas ganham cada dia mais o prestígio que merecem.
Em 2015, por exemplo, o francês André Magnin foi curador de uma exposição de arte congolesa na Fondation Cartier. A exposição foi estruturada de maneira bem didática, com obras em ordem cronológica, tudo entremeado por cabines de áudio onde tocavam músicas do país, com suas traduções e explicações. Outros exemplos de visibilidade são a feira 1:54, apenas de arte africana, criada em 2013 em Londres, ou a AKAA (Also know as África) em Paris, ou ainda o Armory Show, em NY. Todo ano a feira escolhe um artista para construir sua identidade visual, e esse ano foi Kapwani Kiwanga que nasceu no Canada mas é filha de africanos e trabalha muito com a ideia de diáspora em diferentes mídias: vídeo, instalação, fotografia e performance. No Brasil ainda precisamos de mais ações para nos aproximarmos desse mundo imagético.
O prêmio Hasselblad foi outra grande oportunidade de visibilidade para a fotografia africana. O fotógrafo do Mali, Malick Sidibé, foi o primeiro africano a ganhar o prêmio, em 2013. Foi um fotógrafo atuante nos anos 60, com um forte registro documental do cotidiano de Bamako e de sua vida noturna. Retratista da sociedade, Malick tinha um estúdio na capital onde fotografava seus costumes, sua moda e sua cultura, em imagens em preto e branco. Todos passaram por seu estúdio, desde o agricultor, o músico, o jovem que começava a fumar, as amigas… E as imagens aparecem de maneira leve, cúmplice, certeira em composição e beleza.
As imagens de seu estúdio são importantes pois testemunharam um momento de orgulho e efervescência do país. Aquele momento pós independência (o Mali foi colônia francesa até 1960) onde todos acreditavam no futuro e explodiam com projetos e sonhos. Quando o Mali recriava sua identidade, Sidibé fotografava a transformação em imagens espontâneas e descontraídas. Mais do que isso, seu estúdio é relatado como um ponto de encontro e de discussão para a comunidade local. Ali todos se sentiam bem, retratados de maneira simples e direta.
E terminando com um pouco de música boa para entrar no ritmo.
Entre o ataque terrorista do Bataclan em Paris e o rompimento da barragem de Mariana em Minas Gerais, se passou 1 ano.
Depois desse distanciamento temporal o que ficou dessas duas catástrofes?
De um lado, relatos de jovens sobreviventes aterrorizados pelas lembranças e marcas da armadilha que se encontraram (uma casa de show fechada onde terroristas atiravam ao léu), uma população amedrontada com o terrorismo crescente tido como inconsequente, e um governo lutando para entender quem é o inimigo e como combate-lo, criando medidas, fazendo alianças e atacando de volta. Do outro lado, a maior catástrofe ambiental brasileira que contaminou rios com metais pesados e compostos químicos, matou e desabrigou pessoas, atingiu reservas ecológicas, eliminou espécies animais, acabou com a vida e o sustento de populações ribeirinhas. Nem em um canto do mundo, nem no outro, soluções foram encontradas, os culpados pagaram ou as vítimas foram indenizadas. Muito pelo contrário, as feridas continuam abertas.
O rio já sabia que ia ser morto. Quando a sujeira veio, ele foi subindo chorando, fazendo barulho. E minha mãe chorando junto. – Tatiana, da tribo Krenak.
Pensando em fotografia e catástrofe, seja ela natural ou gerada pelo homem, podemos falar de uma incompatibilidade entre ambas. A dimensão temporal da catástrofe não seria consistente com a natureza instantânea da fotografia. Um desastre é um evento que espalha sofrimento em grande escala. Mais do que isso, ele se estende em todas as escalas possíveis: no espaço, no tempo, na história, no íntimo. Já a imagem é produzida no momento presente: no delineamento do visor, do olhar do fotógrafo, do meio em que é vista. Como apontam muitos críticos da fotografia, a foto não tem o poder de explicação ou análise do acontecimento trágico.
Bruno Veiga, Deserto Vermelho, 2016
Uma fotografia trai a verdade histórica na medida em que ela representa o passado ao invés de revelá-lo no presente. – bruno chaouat
Além disso, nós experimentamos um sentimento estranho ao olhar as representações de catástrofes: existe uma oposição entre o fluxo de imagens sobre a realidade trágica e a nossa capacidade em responder adequadamente à representação desta tragédia, seja pelo lado emocional, prático, ético ou político. Somos inundados com fotos de desastres publicadas na mídia que de certa forma banalizam o evento e com isso abstraímos a representação dessa realidade agressiva. Operamos um distanciamento e uma dissociação diante do espetáculo promovido pelas redes de comunicação.
Fora as questões éticas que perpassam algumas imagens que exploram o sofrimento alheio com um voyeurismo perverso unicamente para chamar atenção.
A arte não reproduz o visível, mas torna visível. – Paul Klee
Por isso, existe um enorme desafio para o fotógrafo que se propõe a registrar imagens de desastres. Como os dois ensaios que gostaria de falar: Deserto vermelho, de Bruno Veiga e 1974-2015 : Paris, ville meurtrie par les attentats, de Alexandre Guirkinger.
Bruno Veiga
Seis meses após o desastre em MG, o fotógrafo Bruno Veiga decidiu retratar os rastros deixados na região através dos efeitos da enxurrada de lama no rio Gualaxo do Norte. Ao invés de escancarar o drama pessoal das vítimas, ou estetizar os horrores das ruínas das cidades devastadas pela lama tóxica, Bruno se relacionou com o tempo. Em um primeiro momento ele adia a ida à região para poder “pesquisar as dimensões do problema no pós-tragédia”, passado o calor do momento. Graças a esse distanciamento do tempo e da urgência, ele consegue abarcar nas suas fotografias o transbordamento das escalas da catástrofe. Suas imagens das margens do rio com sua vegetação cortada por uma linha vermelha, reta, quase perfeita, evocam claramente o desastre da lama, mas sem apelos. A linha é agressiva pois percebemos que não é natural ao meio tornando a paisagem surrealista. A mensagem é objetiva, mesmo que sutil.
Essa linha também mostra a escala temporal do desastre: na parte de baixo, os vestígios da lama vermelha que tomou o lugar de um rio outrora rico em vida e hoje morto; na parte de cima, a vegetação verde, sobrevivente, tentando respirar e olhar para frente. No detalhe da catástrofe, no íntimo do recorte das árvores, Bruno ultrapassa o limite do recorte fotográfico e propõe ao espectador dialogar com vários significados da tragédia e seus vários tempos.
O olhar que aqui se propõe aspira a algo como uma arqueologia do presente – porque o presente, em alguma medida, não cabe mais em si, é um enlace de tempos: de um passado que não é mais com um futuro que não será. – Eduardo Sterzi, revista Zum
1974 – 2015 : Paris,ville meurtrie par les attentats, Alexandre Guirkinger, 2016
Em seu ensaio, Alexandre passa por 8 lugares onde o terrorismo atacou a cidade de Paris. Entre 1974 e o atentado do Bataclan em 2015 foram 191 mortos e 1800 feridos por atos terroristas nesses 8 marcos: uma casa de show, uma loja, uma estação de metro, um jornal… Ele mistura imagens de época com imagens suas, atuais, de detalhes da vida cotidiana no presente. Em seu ensaio também existe um diálogo temporal que fala diretamente com o passado mas que faz referência ao futuro desses ambientes e dessas pessoas que hoje continuam perpassando esses lugares corriqueiros da vida parisiense.
Com uma oposição mais óbvia os mostrar lado a lado as imagens apelativas do instante da catástrofe e as imagens cotidianas de hoje em dia, podemos perceber nitidamente um confronto entre tragédia e sobrevivência, vida e morte, espetáculo e naturalidade, “continuidade (a catástrofe) e descontinuidade (a foto), totalidade e singularidade”, urgência e distanciamento. Confronto que também é percebido nas imagens de Deserto Vermelho.
Eu diria que em seus ensaios, os fotógrafos se propuseram a capturar o momento que constitui o silêncio. O momento da mente começar a raciocinar e os olhos abrirem após o caos e a destruição. O momento após sermos atordoados pela explosão de imagens e depoimentos, pela urgência dos fatos e números, pelas análises da mídia. O momento quando Paris, devolvida à sua banalidade quotidiana, retoma o fluxo normal de vida, e que a Samarco continua com seu empreendimento. O momento de um silêncio antes de continuarmos as discussões, as ações e os protestos.