A família brasileira ao longo dos anos

Estreou semana passada na galeria BNDES, no Rio, a exposição “Retratos da família Brasileira” de 1850 a 1960. São fotos antigas, preciosas pela história que carregam da nossa cultura e muito interessantes de observar. Cópias, em grande maioria originais, do curador José Inácio Parente, narram a história da fotografia no Brasil e dão uma boa mostra da nossa tradicional família brasileira.

Mas o marcante mesmo é como a organização familiar mudou tanto desde 1850! E o que não falta são motivos históricos: os avanços tecnológicos que possibilitaram uma família sem a necessidade do coito, o advento da pílula, a emancipação da mulher no século 20, as mudanças econômicas desde a Revolução Industrial, o aumento da urbanização, o advento da psicanálise…. Enfim, o que é certo é que a família hoje mudou, e muito. Mas e a representação imagética da família, mudou?

 

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 Imagem da exposição “Retratos da família Brasileira”

 

Hoje não se pode mais julgar se as pessoas são da mesma família só porque se parecem ou não. De repente, um cara japonês e uma mulher loura podem ter um filho negro. (“Nomes do amor”)

 

Pensando nesse enorme tabu que ainda existe diante das novas organizações familiares, a fotógrafa Simone Rodrigues lançou o livro “Nomes do amor – o amor que ousa dizer seu nome”. São retratos e depoimentos de casais LGBT que tem uma relação estável de mais de 2 anos. Alguns adotaram filhos, outros não; não importa, o que importa é que todos formam uma família.

 

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Weykman e Rogério, Anna Cláudia, Juliana, Luiz Fernando, Maria Vitória

 

Entrando na sala de estar dessas famílias, o leitor percebe que não existe nenhum fantasma escondido embaixo do sofá. Muito menos plumas e paetês. As fotos e histórias do livro desmitificam a imagem caricatural e errônea que muitas pessoas ainda tem da família composta por pessoas do mesmo sexo. Dialogando com a história da fotografia clássica de família – aquela da exposição em cartaz no BNDES – as famílias posam diante de uma antiga camera analógica hasselblad. O que vemos é uma outra representação da família brasileira, mas que no fundo nem é tão diferente assim. São imagens de casas, salas, sorrisos, crianças e pais comuns, simples e realistas.

 

“O amor é comum, o afeto é comum”.

 

Os casais homoafetivos não são uma novidade do século 21, eles sempre existiram, porém em uma posição bem mais marginal, obrigados a se esconder. Hoje, exigindo seus direitos e se engajando, esses casais se tornam protagonistas. Protagonistas em suas histórias e em nossas histórias também, escrevendo novos capítulos no direito, nas religiões, na fotografia, na arte e em nossas tão ostensivas “verdades”. As fotografias de Simone Rodrigues ajudam a criar uma ponte necessária para o conhecimento e o diálogo.

 

Para alguns, aceitar uma nova leitura de mundo pode ser insuportável, pois os obriga a repensar, ou mesmo abandonar, tudo aquilo que até então era dito como “natural” e “imutável” e que servia de referência. Evidencia-se, assim, o caráter imaginário de toda verdade, provocando o retorno dos eternos questionamentos: quem somos, de onde viemos, para onde vamos, o que nos constitui como sujeitos…

 

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Marah e Samantha

 

O projeto “Nomes do Amor” começou no Rio de Janeiro mas quer se estender por todo o país, pensando na importância dessa nova representação imagética da família brasileira.

 

A exposição “Retratos da família Brasileira” fica em cartaz na galeria do BNDES, até 09 de setembro na Av. República do Chile, 100, das 10h às 19h.

http://www.fotorio.fot.br/pt_br/2016/exposicao/1895/retratos-da-familia-brasileira

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O que você vê?

Sem querer me estender muito, todos já olharam para o lado e tenho certeza que estão percebendo o aumento de intolerância, medo e racismo, no Brasil e no mundo. Em algumas palavras, Inglaterra que vota sua saída da União Europeia, mais um ataque terrorista na Turquia, na França, atentado de Orlando… Enfim, não vou enumerar aqui todas as últimas manchetes.

Mas essas notícias me lembraram uma palestra no MAR – Museu de Arte do Rio – onde alguém falou uma frase sobre os refugiados (tenho que melhorar meus métodos de anotação, não sei mais quem disse isso) .

 

OS REFUGIADOS SÃO CORPOS, E NÃO-IMAGENS.

 

Hoje em dia, a imagem é totalmente e absolutamente visível, transparente. Mais do que isso, hoje somos “vistos” e representados mais por imagens que por corpos. Online e off-line, somos imagens pornográficas que não escondem nada, sem mistérios. Perfeitas, pensadas, posadas e clicadas.

 

tudo precisa acontecer na tela, sob esse dedicado materialismo da visibilidade do mundo.

 

Corpos são sobras, estatísticas, simbolicamente invisíveis.

 

Voltando a nossa frase de efeito, se os refugiados são corpos e não-imagens, eles perdem seus direitos, sua humanidade, pois sem as imagens não existimos no mundo de hoje.

 

Mas existimos.

 

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“I was afraid when it was calm, when they checked to see who had passed away and who was injured. I felt safer in the midst of the shelling. I preferred to sing or listen to music when it was calm.” © Omar Imam

 

 

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“My wife is blind… I tell her the stories of her favorite TV series and sometimes change the script to create a better atmosphere for her.” © Omar Imam

 

 

Toda as imagens desse post são do fotógrafo sírio Omar Imam, tiradas de refugiados sírios no Líbano, país que conta com mais de 1 milhão de exilados. O link, as imagens e suas histórias são imperdíveis. http://arabdocphotography.org/project/live-love-refugee

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Alguns pontos de uma longa discussão sobre a teatralidade na fotografia

Henry Cartier-Bresson falava do “instante decisivo” na fotografia. Esse instante seria a captura de um momento único no mundo sempre em movimento (ótima idéia para um futuro post pois poderíamos discorrer um bom tempo sobre isso). Diferente de um momento que aconteceu diante da câmera, a teatralidade na fotografia traz o conceito de uma maior construção da imagem.

 

Quando falo de teatralidade na imagem, penso em encenação e performance. Em uma imagem ligada ao teatro. Como a imagem de Marcel Duchamp travestido em Rose Sélavy feita por Man Ray em 1920.

 

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Mas em que sentido ligada ao teatro? A arte do teatro pode ser exemplificada como uma interpretação de uma história para uma plateia, com capacidade de iludir e criar simulacros. O espectador sabe que está vendo algo falso mas é envolvido e se deixa enganar. Como de uma certa maneira também acontece no cinema e na televisão. O fotógrafo Jeff Wall diz que o cinema é extremamente poderoso em iludir o espectador, é um meio sonâmbulo dele se aproximar da utopia.

 

O teórico modernista Michael Fried, ao criticar as obras minimalistas, protesta contra o que ele chama de teatralidade das obras, pois, para ele, os minimalistas transformavam o observar da obra em um espetáculo onde tudo já era dado e desvendado previamente. Ele defende uma imagem desprovida de artifícios.

 

Imagens rebuscadas, cores vivas ou detalhes teatrais apelativos, esses artifícios da imagem teatral seriam capaz de envolver o olhar do espectador numa mentira, num jogo onde a ilusão vira realidade. Mais do que isso, a encenação substitui o real, levando o espectador ao engano no espaço da vida (social, político…).

 

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Inserido em uma história da arte, alguns fotógrafos, segundo Fried, escapam da teatralidade nefasta e dialogam com as problemáticas do simulacro (cinematográfico, no caso). Artistas como Hiroshi Sugimoto, Cindy Sherman e Jeff Wall. Sherman, por exemplo, imita as fotografias stills do cinema com um grande cuidado em manter uma total neutralidade. Ela não quer retratar emoções fortes, como normalmente vemos em fotos de bastidores de filmagens. Ela imita os stills na técnica e nas cenas que ela reproduz, porém faz questão de resistir ao teatral mantendo grandes distâncias do objeto, ou fazendo um enquadramento de perfil. Sempre há uma atenção de sua parte de não explicitar uma comunicação entre o público e o objeto, de manter uma distância e de sobretudo não dramatizar.

 

Sugimoto, em sua série “Theaters”, quebra com a ilusão, pois retira de seus cinemas, além do próprio filme, os espectadores, e de seus drive – in os carros. Ele desmistifica o cinema, retira toda dramaticidade e teatralidade e deixa o espectador da fotografia livre para poder entrar no seu cinema e olhar consciente e criticamente esses templos de ilusão.

 

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Mas podemos defender que uma obra de arte é teatral por excelência porque terá sempre uma relação com o espectador, a obra não existe sem o olhar (alguns filósofos defendem que sim, que a obra existe por si só). Assim, a teatralidade se daria na fotografia quando essa seduz o espectador numa experiência espaço-temporal, confundindo-se com o real, apelando para vários sentidos do espectador e transformando-o.

 

Como mostra Catarina Vaz em sua dissertação de mestrado, a teatralidade pode ser pensada bem mais positivamente que Michael Fried supõe. Pois seria “a capacidade de absorver o espectador através de um jogo, criando duplos, que o faz transgredir e anular-se para se colocar na obra”. A obra, em sua teatralidade, comove, mexe, transforma o espectador. Estabelece um jogo com os sentidos criando comunicação.

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Fotografia, escultura e espaço

Falamos, um pouco, no post da semana passada sobre os diálogos entre pintura e fotografia. http://photolimits.com/uncategorized/man-ray-fotografia-e-inconsciente/

Mas entre fotografia e escultura, será que também existiria uma troca? Entre a bi-dimensionalidade de uma linguagem e a tri-dimensionalidade da outra talvez as diferenças sejam mais óbvias que as similitudes e seja difícil pensarmos em algum tipo de relação entre as duas.

 

A fotografia ainda é uma mídia recente, diferente da pintura ou da escultura, ela está em pleno processo de desenvolvimento e repleta de brechas para inovações e descobertas. A ideia primordial que temos da fotografia se resume a sua proximidade e semelhança com a realidade. Mas há tantos caminhos para alargar as investigações fotográficas.

 

A escultura é uma linguagem bem mais antiga. Ao longo de sua história, culminando no século XX, com os minimalistas, a performance, o land art, entre outros movimentos, se dá uma reconfiguração da linguagem escultural, produzindo um novo significado que traz a obra para a sociedade e reflete sobre uma nova noção de espaço vivido. A fotografia colabora nessa revisão dos parâmetros estéticos da escultura de uma nova interpretação do espaço.

 

Existe entre a fotografia e a escultura silenciosas cumplicidades.

 

Muitos artistas dão à fotografia um corpo escultural. São obras fotográficas destinadas a serem esculturas, elas não existem como objetos bidimensionais. Com isso o artista, independente de seu objetivo particular, extrapola os limites do meio fotográfico e invade o espaço e o tempo presente. A fotografia, plana, tirada em um momento preciso na linha do tempo, invade duplamente o presente: no seu ambiente e no seu instante atual. No Rio, o artista Marcelo Macedo deu volume as suas imagens garimpadas em feiras de antiguidades, na exposição “Travessia” no Sérgio Porto, Rio de Janeiro (até 17 de julho de 2016) – http://www.fotorio.fot.br/pt_br/2016/exposicao/1868/travessia .

 

Outro canal para esse diálogo se dá na outra direção do que falamos acima, a escultura que fica plana. Um bom exemplo é o fotógrafo francês George Rousse que trabalha o lugar arquitetônico, recorta planos no espaço, brinca com os enquadramentos do olhar. Suas esculturas são na realidade fotografias, destinadas a serem imagem, elas não existem como objetos tridimensionais.

 

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O fotógrafo Hiroshi Sugimoto também fala dessa ligação entre as duas linguagens na montagem da exposição. Ele trabalha com a fotografia bidimensional. Ao montar a exposição no ambiente da galeria ou do museu, ele transforma suas fotografias bidimensionais em um espaço escultural tri-dimensional, “em toda exposição que faço, tento montar o espaço. É muito importante. É como se fosse um espaço escultura”, diz ele. Em 2004, na galeria Yoshii em NY, ele montou seus Dioramas em um quarto escuro. Cada foto foi instalada individualmente dentro de uma caixa preta contendo a sua própria fonte de luz. O público tinha que se deslocar de imagem em imagem e olhar através de uma abertura na parede. As imagens fotográficas bi-dimensionais se transformam em verdadeiras réplicas e maquetes tri-dimensionais, lembrando uma escultura e questionando nossa percepção da realidade e nossa idéia de real.

 

106, 4/16/05, 9:19 AM, 16G, 4156x5268 (180+336), 75%, Hujar 91604, 1/120 s, R72.7, G57.1, B79.7

 

Com apenas alguns pontos pensados para esse pequeno post, evidenciamos um claro diálogo entre essas linguagens. Diálogo esse que permite novas possibilidades de representação do espaço e de libertação da materialidade da obra.

 

Vale conferir, para quem estiver em Paris, a exposição “Entre Sculpture et Photographie” no museu Rodin até dia 17 de julho de 2016.

http://www.musee-rodin.fr/fr/exposition/exposition/entre-sculpture-et-photographie

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Man Ray, fotografia, surrealismo e inconsciente

Por volta de 1910, através do experimentalismo dos movimentos de vanguardas modernistas, como os dadaístas, os futuristas, os construtivistas, além dos surrealistas, a fotografia e a pintura resolveram dialogar. A fotografia tentou se desligar de um enfoque pictorialista, de uma abordagem estética mais tradicional e enveredar por uma linguagem própria. E para todos os movimentos vanguardistas, a fotografia era uma chance de explorar uma linguagem em desenvolvimento, ligada à modernidade, livre e aberta para um vasto campo de possibilidades.

 

A maioria dos artistas modernos enveredou pela experiência da linguagem fotográfica, mas foi talvez no espírito surrealista que a fotografia desempenhou seu papel mais influente.

 

Os surrealistas desenvolviam projetos voltados para uma visão mais pessoal do fotógrafo e com uma vontade de quebrar a estreita relação com o referente. Era uma tentativa de fazer a fotografia ganhar ares mais abstratos e conceituais e, com isso, mostrar um movimento da vida interior das coisas. Um exemplo são as experiências com o fotograma do fotógrafo Man Ray. Ele abriu o campo da fotografia, experimentou processos especiais no fotograma como a solarização e a montagem de negativos e, inclusive, reinventou o fotograma, o batizando de rayograma.

 

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Ele também criou um estranhamento frente ao real utilizando diferentes enquadramentos e cortes – como o close –up – e tratamentos de luz não-convencionais. Todos esses artifícios rompem com os parâmetros da realidade (ainda mais para época) e liberam a mente e a criatividade. As fotografias de Man Ray apontam para uma surpresa frente ao óbvio, uma intuição desprevenida, uma interioridade do sujeito, um desvelamento de uma essência pré–visual, um afloramento do inconsciente. E aqui encontramos o conceito de inconsciente psicanalítico. Esse inconsciente, de maneira geral, seria uma esfera psíquica não atrelada à racionalidade do cotidiano e onde brotariam esferas mais subjetivas e mais intuitivas da mente, como nossas paixões e nossa criatividade.

 

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Os surrealistas dialogavam com a relação da fotografia e seu referente de outra maneira. Para eles, explica a crítica de arte americana Rosalind Krauss em seu livro O Fotográfico, a natureza era vista como um signo e a fotografia como uma escrita do inconsciente dessa natureza. Ou seja, a fotografia surrealista queria tentar revelar o lado oculto da realidade, como se a realidade, por meio da fotografia, se transformasse em uma visão diferente dela mesma. Podemos associar esse conceito com a noção de escrita automática dos surrealistas, que era tida como uma escrita direta do inconsciente.

 

A fotografia surrealista era uma tentativa de abstrair, de fotografar o pensamento interior, as próprias ideias. O tempo apresentado passa a ser o tempo interior, do inconsciente. A fotografia, para os surrealistas, seguindo as ideias da psicanálise de Lacan, seria uma expressão pré-verbal do imaginário, uma manifestação do inconsciente, algo como a visão da consciência em si, antes da razão e do intelecto quebrarem com a inspiração original.

 

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