Falar do trabalho de um amigo é difícil demais. Não sabia até começar esse post. Ainda mais quando esse trabalho é sutilmente elaborado, de maneira forte, eficaz e esteticamente arrebatador. E quando esse tal amigo, chamado Shinji Nagabe, ainda dialoga com duas culturas diferentes. Brasileiro, paulistano de família originária do Japão, Shinji cresceu entre dois pilares culturais.
Eu o conheci na época do Prêmio Gávea de Fotografia, em 2016, quando ele ganhou na categoria “imersão fotográfica”. O prêmio consistia em passar 10 dias viajando por Alagoas com o curador Marcelo Campos. Foram 5 cidades visitadas e 750km percorridos pelo estado, onde Shinji desenvolvendo uma nova série. Essa série, Imersão, colocava em cena o desenvolvimento do estado e seu crescimento sócio- econômico ligado ao açúcar. Também desvelava suas paisagens. Mas o foco principal sempre foi sobretudo o ser humano. Mesmo sem mostrar o olhar das pessoas, Shinji representa o humano e toda sua complexidade identitária cultural. Em seu trabalho, Shinji não precisa escancarar os rostos para perpassar a história daquela pessoa, ou daquele povo. Ele o faz de forma sutil mas não menos imponente.
Contra uma crença bastante difundida, a fotografia não é um meio transparente de ver. Configura diferentes pontos de vista envolvidos no mundo.
De seus rostos escondidos, sufocados até pela realidade, pela história, pelo cultura, transparecem cenas imaginárias. Além disso, com a ajuda de acessórios ele cria fantasias: chuva de açúcar, guerreiros de capa dourada ou máscara prateada, lanças de cana de açúcar… Porém, para mim, esse primeiro olhar imaginário logo é suplantado pela realidade nua e crua que escancara, em suas imagens, a história humana. Uma história cheia de angústias, frustrações e sonhos. Na série “Imersão” vemos a história dos povoados de Alagoas, sua colonização através do açúcar e seu caminho ao esquecimento. Surgem questionamentos ao redor da construção de identidade dessas pessoas, suas raízes, sua cultura comum e sua realidade. Contudo, são retratos pensados de maneira discreta, doce e lúdica. Talvez à maneira japonesa.
Suas cores fortes, e os detalhes pensados junto com as pessoas de cada região, são mais obviamente ligados à cultura brasileira. Vemos dourados que refletem a luz do sol, ou a água dos rios, laranjas, flores fluorescentes, paredes coloridas. Os retratos de Shinji, e seus adereços, abrem um diálogo para além do retratado. Falam tanto do fotografado quanto do artista e sua origem bi-cultural. E falam também do observador, perpassando conceitos, histórias, relações e tempo.
Talvez por causa de sua bagagem oriental, talvez por suas influências ocidentais, sua trajetória pessoal, ou um pouco de tudo isso junto, Shinji problematize no seu trabalho fotográfico inúmeras questões que vão além da fotografia. Permeando a filosofia, a realidade, a religiosidade, a história, a identidade, ele nos leva a explorar outros alicerces da imagem fotográfica. A fotografia é uma linguagem e como tal constrói representações e comunica, transformando a realidade e sendo por ela transformada. O olhar fotográfico, a partir de Shinji, pode nos levar a novas possibilidades de pensar e perceber a nós mesmos.
“Não é, em última instância, uma imagem de algo, mas é antes uma fotografia impossível – a fotografia de uma idéia”. – Kerry Brougher
Hoje Shinji vive na Europa, sendo um estrangeiro inserido em outra cultura. Dizem na psicologia que é somente diante do outro que reconhecemos nossa identidade. Talvez esse seja o processo pelo qual Shinji passou e passa. Foi preciso para ele se perder no outro, para então se voltar para si e procurar entender a sua origem. E sua origem nos perpassa.
*A exposição do prêmio Maison Blanche, ganho por Shinji Nagabe este ano de 2018, acaba dia 09 de novembro em Marseille. Endereço: 150 Boulevard Paul Claudel, Marseille.