No limite da vida

Nesse mês de fevereiro abre a exposição Another Kind of Life – photography of the margins (Outro tipo de vida – fotografia das fronteiras) em Londres, no Barbican Centre. A exposição reflete uma visão rica da vida de indivíduos e comunidades que operam às margens da sociedade. Seja na Europa, EUA, América Latina ou Índia, as imagens procuram mostrar uma representação mais autêntica de comunidades que são privadas de seus direitos básicos, quanto mais ainda do direito de serem retratadas honestamente. A lente desses fotógrafos, impulsionados por motivações pessoais e políticas, tenta construir uma identidade que mostra a complexidade e diversidade do mundo e da humanidade.

 

O Barbican Centre foi construído após a Segunda Guerra Mundial numa área londrina extremamente bombardeada pelos nazistas. Com uma visão utópica sobre o futuro, os 3 arquitetos – Chamberlin, Powell e Bon – pensaram em um prédio moderno, de grande escala e proporções internacionais. Depois de 30 anos entre o projeto e a abertura, o enorme centro de 190.000 m3 foi inaugurado em 1982 pela Rainha. O prédio foi considerado um marco arquitetônico do estilo brutalista e conta com uma sala de concertos de 2000 lugares, um teatro para 1.300 pessoas, uma galeria de arte, uma biblioteca, a escola de música e de teatro Guildhall, cinemas, áreas abertas, estacionamento e um parque.

 

 

Evelyn, La Palmera, Santiago, da série As maças de Adão, 1983, Paz Errázuriz

 

Fotografia de rua, fotojornalismo, retratos, fotografia documental, vários estilos nos mostram, na extensão das salas de exposição, as diversas comunidades perseguidas ao longo dos anos, pelo mundo. Mais do que isso, 20 fotógrafos expõem obras onde essa contracultura é apresentada como agente de mudança. Rebeldes românticos, viciados, foras da lei, sobreviventes, indivíduos economicamente despossuídos, transgêneros e todos aqueles que aborrecem abertamente a convenção social, são reconhecidos para além do clichê. A exposição consagra a diferença e a empatia, ao invés de ridiculariza-la.

 

Paz Errazuriz, Pieter Hugo, Mary Ellen Mark, Larry Clark, Dayanita Singh, entre outros, nos mostram gangues de rua, homens vestidos de mulher em Nova Jersey nos anos 60, travestis da era Pinochet, mafiosos japoneses, etc. O tema é vasto e podia ser facilmente apresentado de maneira estereotipada ou voyeurística, unicamente para matar a curiosidade do público. Não é o caso. Inserida no programa do Barbican de 2018, A arte de mudar, a exposição aborda como artistas respondem a questões vitais do mundo, como feminismo, direitos humanos, gênero, mudanças climáticas… É um olhar sobre o papel do artista ao retratar subculturas diante de incertezas políticas e econômicas globais. Como são representados, nesse caso visualmente, pessoas atualmente sub-representadas? Venha conferir. A exposição fica em cartaz até fim de maio, nos lembrando não apenas do progresso que fizemos até hoje em relação ao outro, ao diferente, mas do trabalho árduo que ainda precisa ser feito.

 

Igor Palmin, da série vagabundos encantados, USSR, 1977

 

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A simplicidade de um olhar: a nova objetividade de Albert Renger-Patzsch

A linda exposição de Albert Renger-Patzsch fica em cartaz no Jeu de Paume em Paris até janeiro de 2018. Fotógrafo de nome difícil e olhar suave, o alemão Albert participou do movimento da nova objetividade nos anos 20. Movimento pós guerra, que surgiu na Alemanha como resposta ao Expressionismo e seu subjetivismo, a Nova Objetividade queria trazer de volta um realismo nas artes.

 

“It’s important to see things the way they are.” (Otto Dix, pintor da Nova Objetividade)

 

Cobra, 1927

 

Na fotografia, esse movimento teve uma dimensão anti-pictorialista, querendo trazer a tona a objetividade da mídia fotográfica. Albert foi um grande nome a frente desse movimento, e conseguiu dentro da precisão do meio e suas caraterísticas miméticas, acrescentar um olhar belo as suas imagens. Sua identidade estética testemunha de um rigor técnico e formal que usa a camera para intensificar a nossa visão e consciência de realidade. Ele consegue trabalhar com o fundamental da fotografia para criar. Justamente por isso, por sua simplicidade e sobriedade, em um estilo quase documental, suas imagens são tão fortes.

 

Ruhr e Möhne, 1936

Sua retrospectiva em Paris, consegue abarcar suas fases e seus diferentes objetos de estudo: como as plantas, as paisagens alemãs, os objetos industrias e a arquitetura. São diferentes temas mas apenas um foco principal: o estudo da fotografia. Em suas pesquisas conceituais, Albert consegue conjugar a potencialidade criativa e artística da fotografia com seu lado técnico e mecânico.

 

Durante sua vida, lançou vários livros. O que mais me chamou atenção foi seu livro “O mundo é belo” de 1928. Numa representação realista do mundo, através de ângulos de visão criativos e inusitados, Albert nos apresenta monumentos, estruturas industrias, objetos, natureza, paisagens: o mundo de formas que ele descobriu. Um inventário universal e uma bela surpresa para os leitores. Mesmo entre duas guerras, as imagens de Albert parecem extremamente positivas, quase abstratas à realidade intensa daquela época, senão fosse por seu compromisso com a realidade.

 

Essen, 1929

 

Floresta Spruce, 1951

 

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Sophie Calle, entre caça e caçador

A artista e fotógrafa francesa Sophie Calle está com uma estupenda exposição no museu da Caça em Paris. Em uma antiga casa de 3 andares, ela cria um jogo de rastros e pistas, onde vamos descobrindo as pegadas da artista contemporânea no meio do acervo de animais empalhados. Ela é a caça e somos os caçadores? Talvez. A experiência é bastante rica e sem notarmos, esse jogo nos aproxima mais da fotografia e suas fronteiras.

 

A exposição, com alguns trabalhos antigos da carreira de Sophie, é feita como homenagem ao seu pai que morreu. Morte, capturar a presença e a memória, perseguir histórias e imagens, apreender, aprisionar, fantasmas são alguns termos que rastreamos ao longo da exposição: através das obras da artista, da coleção do museu e das questões em torno da fotografia.

 

 

O cinema é a vida, a fotografia é a morte. – Susan Sontag

 

O trabalho de Sophie Calle tem uma estreita relação com sua vida pessoal. Ela dormiu no topo da Torre Eiffel (durante a primeira Nuit Blanche em 2002), passou a noite em uma cabine de pedágio na rodovia perguntando aos motoristas onde podiam levá-la, foi stripper, contratou um detetive para segui-la por vários dias, seguiu um homem aleatoriamente, pediu para estranhos dormirem com ela, e transformou tudo isso em obras de arte. Anos antes trabalhou com a morte da sua mãe: leu o diário da sua mãe em público, e filmou a morte de sua mãe, seu último suspiro, com seu acordo. Agora chegou a vez de lidar com a morte do pai. Ela caça esse novo rastro perdido.

 

O início da exposição trás a fotografia de um urso branco, que fica na entrada do museu, encoberto por um grande lençol branco, como um fantasma. Fácil de relacionar a morte com a fotografia; depois que a pessoa se foi, e fica apenas sua lembrança e suas fotografias – seus fantasmas – será que nos lembramos mesmo de como era a pessoa? De sua alma? A fotografia interpreta um momento, mas não mantém a pessoa amada conosco, a vida continua. A fotografia torna-se um lembrete constante de que o tempo passou e não voltará, que a pessoa se foi e não voltará.

 

A exposição continua com a presença da morte. Em um quarto com os ares de mausoléu, nossos olhos cruzam o próprio túmulo de seu pai recentemente falecido. Vemos também o que seria a última fotografia de seu pai, na FIAC, e um texto que explica o porque dessa foto ter sido tirada: “porque ele estava sorrindo. Porque na pintura atrás estava escrito silêncio…”.  É uma imagem singela, de nenhum significado para o público, fugaz, com alguns detalhes importantes do pai para a filha, mas tão aquém do que ele era, e tão pouco diante da ausência desse pai.

 

Em Mes morts (2017) Sophie transporta as pessoas que ela ama, mortos ou vivos, simbolicamente em animais empalhados, os personificando dentro dessas peles de animais. Como a fotografia: uma pele de uma imagem empalhada. Mes Morts é acompanhado por Deuil pour deuil (2017), uma instalação em que Serena Carone representa sua amiga Sophie em tamanho natural, como uma efígie mortuária, e todos os seus amados empalhados ao redor. 

 

 

Várias são as ideias que surgem quando pensamos em fotografia e morte. Mas qual seria a memória fotográfica? Não tenho resposta certa, mas diria que passa por uma prática humana natural, a necessidade de manter a memória do ente querido viva. Na língua latina “imago” significava o molde em cera do rosto dos mortos que era colocado em nichos em casa. Guardamos nossos porta retratos ou transformamos em instalações.

 

 

 

*a exposição Sophie Calle e sua convidada Serena Carone fica em cartaz até fevereiro 2018.

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Fotografia, urbano e evolução

As cidades, desde a revolução industrial, cresceram muito, se transformaram de maneira pungente e quase inapreensível. Nessa constante pulsação do urbano, é difícil ter a dimensão das mudanças arquitetônicas e humanas aos longos dos anos. Quando escutamos, por exemplo, os relatos das alterações sofridas no centro do Rio de Janeiro depois da destruição do Palácio Monroe, ou da construção do aterro, será que abrangemos mesmo todas as variações? Paris antes e depois do prefeito Haussman, São Paulo depois da onda migratória do início do século XX, ou ainda Nova Iorque depois das ações políticas e policias em Manhattan e a formação de Brasília… Os exemplos são inesgotáveis: a cidade está em constante transformação.

 

Thomaz Farkas, Brasília, 1959

 

Os grandes centros, ao redor do mundo, estão em um movimento eterno de destruição e reconstrução de identidade. A fotografia acaba sendo uma incrível ferramenta para tentarmos manter uma dimensão histórica da urbe e um certo sentido no emaranhado de tantas memórias dilaceradas. Os registros fotográficos conseguem abarcar as novas paisagens: os altos prédios no lugar das antigas casas, os novos muros, as ruínas acumuladas, as estradas apagadas, épocas e eras sobrepostas.

 

No IMS de São Paulo esse deslocamento do urbano pode ser muito bem apreendido em três ensaios visuais sobre a metrópole paulista. Com a participação de fotógrafos como Cássio Vasconcellos, Henri Ballot, Thomaz Farkas, Marc Ferrez, entre outros, podemos ver de maneira bem didática as novas formas visuais que a cidade nos oferece. E nesse exercício de recuo, proporcionado pela fotografia, redescobrimos nosso lugar individual dentro dessa rede coletiva em transformação. Nosso espaço corporal e identificatório previamente dado é colocado em questão e nos voltamos para novos pontos de vista.

 

Dentre esses ensaios apresentados no IMS, temos alguns exemplos da série “Rua direita” de Claudia Andujar. Se colocando no chão com sua câmera, no meio de uma das ruas mais movimentadas de São Paulo, Claudia interrompe o fluxo contínuo da massa urbana. Os olhares que ela capta de um ponto de vista invertido, mistura a opressão do indivíduo diante do coletivo, e a dificuldade de se criar uma identidade diante do olhar um tanto opressor da cidade.

 

Claudia Andujar, Rua direita, 1970

 

 

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Novo IMS

O Instituto Moreira Salles abriu uma nova sede em São Paulo e o photolimits não poderia ficar de fora. Em plena Avenida Paulista, o IMS sobe verticalmente em 7 andares dedicados à fotografia. Planejado de acordo com uma arquitetura sustentável, em diálogo com a cidade ao redor, o museu tem uma ótima infra estrutura voltada para todas as necessidades da mídia fotográfica: cursos, vídeos, eventos, exposições, palestras… Tudo foi pensado para acolher o público, as obras e as discussões que irão surgir, sem contar a extensa biblioteca, no primeiro andar, uma das mais completas do país.

 

Em meio a crise e falta de recursos das instituições brasileiras já existentes, é uma grata surpresa passar a tarde no instituto e deambular pelas suas 5 exposições de inauguração:  o video “The Clock”, de Christian Marcley, as exposições fotográficas “Robert Frank: os americanos e os livros e os filmes” e “Câmera aberta” de Michael Wesely, além das coletivas “Corpo a corpo: a disputa das imagens, da fotografia à transmissão ao vivo” e “São Paulo: três ensaios visuais”. Deixando de lado os gostos pessoais, as montagens são primorosas, as instalações de primeira, e os diálogos possíveis entre a imagem – fotografia contemporânea, moderna e o vídeo – são bastante instigantes.

 

IMS (foto divulgação)

 

Tido como um dos pontos de referência da fotografia brasileira, o IMS, conta com um acervo no RJ de mais de 2 milhões de imagens, reunindo registros fotográficos do Brasil a partir de meados do século XIX até o início do século XXI, além de 26 mil discos e 10 mil gravuras. Na sua sede carioca, as exposições são muitas vezes voltadas para as imagens da coleção, ou fotógrafos e artistas modernos já consagrados. Com outra proposição, a sede paulista não terá reserva técnica, e em uma de suas exposições de inauguração, a coletiva “Corpo a corpo: a disputa das imagens, da fotografia à transmissão ao vivo”, vemos jovens artistas que começam apenas a despontar no mercado de arte (Letícia Ramos, Sofia Borges, Jonathas de Andrade, Garapa e Mídia Ninja). Debatendo sobre a imagem, o corpo físico e o corpo simbólico na política e na sociedade brasileira, a expo explícita a nova cara do IMS. Mais audaciosa, dinâmica e aberta ao diálogo, a instituição abre suas portas para uma nova geração de artistas e para diferentes formatos imagéticos como a fotografia, a instalação e o vídeo.

 

IMS (foto divulgação)

 

 

E o que falar da exposição principal de Robert Frank? Um pouco confusa pela enorme quantidade de informação, a exposição apresenta 83 cópias fotográficas da década de 1980, da série icônica “Os Americanos”. Durante quase dois anos, Frank rodou os EUA de carro com sua família retratando a sociedade, as pessoas e a cultura americana. O trabalho foi editado em livro e lançado em 1958 em Paris, sendo lembrado hoje como um marco da fotografia direta. Franck deixou de lado a perfeição da técnica para retratar com mais fluidez e subjetividade, sem com isso abandonar as inquietações, problemas e dilemas de todas as camadas de uma sociedade em crise e evolução.

 

Outras facetas do grande fotógrafo de rua, de documentarista e personagem, também podem ser vistas na exposição, em seus vídeos e livros. Em um de seus depoimentos, por exemplo, Robert Frank diz que a fotografia fixa o tempo mas o cinema o coloca em permanente transformação. Não concordo com o mestre, mas creio que esse diálogo é importante e no novo espaço do IMS o discurso é colocado em foco e está aberto à discordâncias e novas ideias.

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