Diálogos: literatura e fotografia

Ando com vontade de dialogar. Acho que o entorno tem favorecido a esse anseio. Com isso, propus a uma grande escritora, e também blogueira do Chez Maiato, um diálogo entre campos artísticos: literatura e fotografia. A proposta funcionou da seguinte maneira: a partir do tema REAL a escritora Renata Maiato escreveu o texto Despedida e com esse tema em mente, e suas palavras, eu tive que pensar em imagens que acrescentassem. Me inspirei no olhar do fotógrafo Julio Bittencourt para entrar nessa discussão.

 

Julio Bittencourt, Numa janela do edifício Prestes Maia, 911, 2006

 

Despedida

Aqui, do meu lugar, posso falar das coisas que eu sei. Do que vivi e que busquei, de todas as coisas que aprendi e o que você me ensinou. Sei da chuva que secamos, e da felicidade maior, sei que ela existe. Olho para sua imagem talhada no altar e vejo a vida, meu passado e meu futuro, meu presente escancarado, tudo aquilo que me brota.

Desde que voltei sinto diariamente os efeitos daquele lugar. Com dificuldade ando pra frente, porém com o olhar curvo, buscando uma página anterior. Quase não me reconheço aqui, onde foram parar tantos medos? A verdade é que ainda me sinto só. Ninguém jamais vai saber ou entender o que mudou do lado de dentro. É como se meu desejo de abrir o coração finalmente tivesse acontecido e agora está tudo muito concreto, muito certo, muito real.

 

Real demais.

 

Despeço-me de quem fui sem dor, como histórias de cristal que se quebram facilmente. A separação se faz, assim, do inimaginável. Da necessidade de correr, da vontade de viver, da vontade de morrer, assim, de tanta vida. É tudo tão raso, papéis, funções, egos; o que sangrava mesmo por dentro? Despeço-me de minhas dores abafadas pelo êxtase, tenho amores e incertezas agarrados nas entranhas. Não entendo do caminho das almas, mas sei que as nossas andam juntas.

O olhar sereno confessa minha fraqueza. Porque você representa tudo o que me assusta; amor, sossego, uma noite tranquila. Sou dada aos grandes saltos, enxergo melhor no escuro, busco o incerto. Acostumei-me com a inquietude, estranho a calma dos seres e dos tempos. Inventei enredos, desenhei histórias, teci labirintos em todo verso para enfim achar o que sempre esteve aqui. É que viver sã estava lírico demais.

 

A realidade me arrebatou.

 

Deitada em seu colo, adormeço. É estranho e deliciosamente leve viver em paz.

 

Julio Bittencourt, Ramos, 2008

 

Julio Bittencourt, Daidokoro, 2013

 

Julio Bittencourt, Algumas coisas são perdidas para jamais serem encontradas, 2011

 

Julio Bittencourt, Citizen X, 2009

 

Julio Bittencourt é paulista, já ganhou vários prêmios, publicou alguns livros e tem trabalhos clicados entre o Japão, EUA e Brasil, dentre eles Daidokoro, Citizen X, Numa Janela do Edifício Prestes Maia, 911 e Ramos. Seus trabalhos retratam ruínas e abandono, tanto de um ponto de vista material, quanto humano. Suas imagens falam de despedidas, afetos e memórias que ficaram para trás. Resquícios de uma realidade real demais.

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Fotografia e ficção em Paraty

Começa hoje, na cidade de Paraty, que em si mesma já mistura a narrativa de cidade de praia com o peso da história da colônia, o festival de fotografia Paraty em Foco com o tema: Fotografia: documento e ficção.

 

“(a fotografia é) imagem ao mesmo tempo real e virtual. Registro fidedigno e imaginário. Materialidade e fabulação”. – site do festival

 

Iniciado em 2005 pelo italiano Giancarlo Mecarelli, o festival chega em sua 13a edição perpetuando seu histórico de difusão, formação, divulgação e construção de uma linguagem fotográfica e visual brasileira. Já passaram pelo festival nomes como Cristiano Mascaro, Thomaz Farkas, Claudia Jaguaribe, Thomas Hoepker, Miguel Rio Branco, Pieter Hugo, Alex Flemming, David Alan Harvey, Evandro Teixeira, entre tantos, tantos outros. Afinal, são 13 anos de festival, com 5 dias de eventos por ano que incluem palestras, workshops, projeções, encontros, ações sociais, leilões e muitas exposições pelas calçadas, fachadas, pousadas, igrejas, espaços culturais, bares, restaurantes…

 

Helenbar, Vitoriano, 2004

 

Com mais de 200 festivais de fotografia pelo mundo, e novos que surgem a cada ano, as possibilidades são enormes, mas podem assustar diante da magnitude de possibilidades. Para o fotógrafo, os festivais são muitas vezes cruciais para fazer contatos valiosos e descobrir as novas tendências do mercado. Mas o mais importante são as trocas realizadas durante o festival. Imersos numa pequena cidade charmosa como Paraty, respirando, vendo e ouvindo sobre fotografia, fotógrafos e simpatizantes acabam tendo uma oportunidade enriquecedora e única de se inspirar. Essa pausa no cotidiano, e na loucura da criação de um trabalho fotográfico, propicia questionamentos sobre o objeto fotografado, os meios de aproximação, as técnicas, o público, a relação com a imagem, sua materialidade e plasticidade.

 

Ao decentralizar o mercado fotográfico dos grandes centros (Rio e SP) para uma cidade do interior (Paraty), o festival envolve a deslocalização de uma rede de profissionais pré-existentes: curadores, críticos, artistas, público. Isso permite criar uma interface entre esses diferentes atores que legitima e valoriza não só os artistas, mas também a prática fotográfica.

 

Em época de crise e dificuldades no universo cultural, nada melhor do que voltar ao cotidiano com energia renovada e o entusiasmo transformado pelas possibilidades inspiradoras da fotografia.

 

Bruno Bernardi, Paisagem Movediça,
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Fotografia e magia

A fotografia tem uma mística e um caráter mágico até hoje, mesmo com toda a banalização da imagem dos últimos tempos. É notório o fácil acesso e difusão da fotografia, com qualquer um que pode tirar uma foto com o celular e em segundos repassar para o mundo e o enorme número de imagens que vemos em todos os lugares e em todos os momentos. Mas a fotografia tem sua magia. Uma foto testemunha uma sensibilidade especial diante do real. O fotógrafo procura sempre pelo mistério.

 

Como já falamos algumas vezes por aqui, a relação entre fotografia e real nunca foi simples e inocente. A fotografia foi inventada por causa de um desejo ancestral de mimesis. E como podemos interpretar dos filósofos gregos, a imitação é uma tentativa de copiar o mundo das ideias, ou em outras palavras, uma tentativa de representar um lado mágico da natureza.

 

E os feitiços da fotografia? Para o escritor francês Honoré de Balzac, a câmara fotográfica não atingiria os corpos, mas a alma, retirando uma camada do espírito humano a cada clique. Tribos indígenas também acreditavam nessas bruxarias fotográficas e tinham medo de serem fotografadas.

 

Quais seriam os feitiços metafóricos da fotografia hoje?

O teórico Vilem Flusser dizia que o espaço-tempo construído a partir da fotografia é próprio da magia. Como já falamos aqui, a fotografia se caracteriza por uma espera dentro do tempo e do espaço, onde tudo se repete em diferentes camadas de tempo, dentro de uma duração e não de um instante linear. O mundo da magia é estruturalmente diferente do mundo da linearidade, onde tudo é um efeito e causa. Por exemplo, no mundo linear, o pôr do sol é a causa da chegada da lua. No mundo mágico, o pôr do sol significa amor ou solidão… As imagens têm um significado mágico.

 

A fotografia identifica o verdadeiro caráter do mundo mágico.

 

 

Zé Barretta, Pigmento Ancestral

 

A fotografia significa tanto um fim quanto um começo para a representação. Pierre Taminiaux, The Paradox of Photography (2009)

 

Me deparei há poucos dias com o ensaio “Pigmento Ancestral” de Zé Barretta. O fotógrafo, a partir de imagens documentais da região da Serra da Capivara, recriou um universo particular. Apenas com seu recorte, luz e olhar, ele questionou o real, o que nos é dado e mais do que isso, inventou um universo mágico. Cada um coloca suas próprias referências. Esse ensaio propicia um diálogo sobre a ambigüidade entre o real e o imaginário, e também, uma reflexão sobre o que se espera das imagens fotográficas, e mais ainda, um questionamento sobre a imagem fotográfica em si. O que é real, o que é ilusão, espaço, tempo, memória, como se dá nossa percepção.

 

Dialogando com a própria essência da fotografia e seu caráter indicial, as pinturas rupestres nas paredes da caverna são indíces, referentes de algo passado que ficou para nós no momento presente. Pode ser uma linguagem, uma representação, não sabemos hoje. Mas como indaga o próprio fotógrafo, e se esses símbolos não fossem nem referentes, nem linguagem, mas apenas uma forma de conectar-se com a natureza e transformá-la. E a partir dessa indagação, ele pensa a fotografia e fotografa criando o mágico.

 

Zé Barretta, Pigmento Ancestral

 

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Sobre as leituras de portfólio

Já participei de várias leituras de portfólio, algumas vezes com meu portfólio embaixo do braço, e olhos ligeiros diante das opiniões dos outros. E muitas outras vezes nos bastidores, produzindo esse encontro.

 

Para quem não sabe, leituras de portfólio são encontros entre fotógrafos – com seus portfólios – e experts diversos do universo fotográfico: galeristas, curadores, colecionadores, pesquisadores, editores… Existem alguns formatos; as vezes o fotógrafo fica com seu portfólio aberto e os leitores passam pelas mesas, outras vezes, a mesa acontece com mais de um fotógrafo e mais de um leitor propiciando um diálogo entre todos, e uma troca de opiniões. E o mais comum dos casos, e o que participei como leitora pela primeira vez, a versão “oráculo”, onde o leitor fica na mesa sentado e o fotógrafo troca de mesa com seu portfólio, de leitor em leitor.

 

Quando fotógrafa nas leituras, na época que ainda acreditava que tinha garra para ser fotógrafa (descobri justamente nas leituras de portfólio que não era para mim), vários leitores usaram dessa “plenitude” oracular para julgar, opinar subjetivamente e dar um parecer final sobre meu trabalho. Nada mais longínquo do propósito das leituras.

 

Felipe Fittipaldi, Eustasia

 

Quando produtora das leituras, era muito animador observar o diálogo propiciado pela discussão e troca de experiências em um ambiente que respirava apenas fotografia. Já caindo no clichê, vi muito olhar brilhando ao se deparar com uma nova produção imagética instigante. É um alento nesse mercado tantas vezes preguiçoso.

 

Bom, agora, como leitora nas leituras, devo dizer que foi tudo que eu imaginei, e muito mais. Tentei deixar meus pré-conceitos de lado, olhar para o fotógrafo, e sem nenhuma pretensão de oráculo apenas respirar fotografia, trocar histórias, pensar o ato fotográfico e viajar na magia dessa mídia. E foi uma bela viagem! Vi universos fantásticos, questionamentos sobre a identidade urbana, o real, auto-retratos surreais, que falam mais sobre nós que sobre o outro, poéticas documentais, fotografias tri-dimensionais, performances imagéticas, relações humanas… Cada fotógrafo foi extremamente generoso e minha mente ainda viaja nas possibilidades de tantos ensaios desafiadores.

 

Luiz Baltar, Fluxos

 

Mas como fazer para continuar motivados?

 

Essa foi a questão que todos me fizeram. Não soube responder. Ainda não sei. Mas acho que ter esse espaço de troca e debate, bastante democrático, de generosidade e inspiração, ajuda a pensar novos caminhos e novas parcerias entre fotógrafos e o mercado fotográfico. O mundo está em crise, o país ainda mais e a cultura…por onde começar! Diria que a solução, por enquanto, só se vier de dentro. A boa notícia é que tem muita gente boa, nova e antiga, pensando a contemporaneidade, produzindo ideias, procurando soluções para a mídia fotográfica e o escoamento de toda essa produção. Vamos continuar pensando juntos, aqui, ali e acolá.

 

Lucas Gibson, Osaka Nightlife
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Foi dada a largada da décima edição do FotoRio

Há mais de 10 anos promovendo a fotografia brasileira, o FotoRio chega em sua décima edição em um ano particularmente difícil. Ano de enorme crise econômica e política, sobretudo no estado do Rio de Janeiro, o Festival Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro sobrevive a duras penas, graças ao apoio de artistas, instituições, técnicos e equipe; numa ação coletiva de ajuda mútua, criatividade e jeitinho. Dos patrocinadores privados pouco se ouviu falar, patrocínio público então, nenhuma ajuda, nenhum gesto que demonstre, como sempre, a importância da cultura no Brasil.

 

O FotoRio é um movimento de fotógrafos que atua como agente aglutinador, estimulando a exposição e a discussão de trabalhos históricos e contemporâneos da fotografia brasileira e internacional.

 

Veios Abertos da Baía da Guanabara, de Ana Carolina Fernandes no CCJF

 

Em poucas palavras, desde sua primeira edição em 2003, em média mais de 400 fotógrafos são mobilizados cada ano em eventos como exposições, mesas redondas, projeções e intervenções urbanas, cursos, seminários, oficinas, palestras e conferências, leituras de portfólio. Em 10 edições, o FotoRio criou uma parceria com a MEP – Maison Européenne de la Photographie – e seu diretor Jean-Luc Monterosso, apresentou grandes fotógrafos internacionais como Henry Cartier Bresson, Helmut Newton, Martine Franck, Graziella Iturbide, Jean Jacques Moles e outros inúmeros fotógrafos brasileiros como Ana Carolina Fernandes, Rogério Reis, Bruno Veiga, José Diniz, Carlos Vergara… O FotoRio abriu espaço para os jovens fotógrafos também, seja nas leituras de portfólio ou em exposições como a coletiva Ser Carioca de Luz em 2015, trabalhou com o MAR, o CCJF, o CCC, o centro Helio Oiticica, o Museu de Belas Artes, a Casa Laura Alvim, o Instituto Kreatori, e praticamente todos os grandes centros culturais do Rio. São muitas histórias.

 

Fora o Encontro de Inclusão Visual, evento pioneiro que proporciona um questionamento, um aprendizado e inúmeras trocas de experiências entre diversos projetos que utilizam a fotografia como instrumento de inclusão social em comunidades populares. O encontro reune coordenadores, alunos e monitores de diversos projetos do Brasil e do exterior para apresentar seus trabalhos, suas formas de organização, suas dificuldades e suas experiências individuais. São inúmeros os projetos que contribuíram nesse rico diálogo, como o Mão na Lata, projeto de alfabetização visual para deficientes visuais, o Inclusão Digital para Jovens Protagonistas, de Realengo, Viva Favela, Nós do Morro, Fotoativa, FotoLibras, entre muitos outros.

 

Albuminas Contemporâneas – O Rio Revisitado, de Ailton Silva, no CCJF

 

Mas nada disso parece importante para os investimentos – privados e públicos – por tantos motivos que todos sabem. O FotoRio não é o único a perecer nesse país pouco fiel a sua cultura e seus empreendedores culturais. Mas chega de lamentações, pelo menos nesse espaço a cultura é valorizada. E com crise e sem dinheiro, o FotoRio já estreou mais de 10 exposições pelo Rio de Janeiro, no Ateliê Oriente dia 12.05, com a exposição “Me chamo kiki e estou aqui prestes a lhe conhecer”, de Mayra Rodrigues, no CCJF, dia 17.05, com uma coletiva de 8 exposições e dia 19.05 no Ateliê da Imagem com uma palestra da fotógrafa Nana Moraes.

 

Leituras de portfolio, FotoRio 2016, ©Hans Georg

Para quem está ou passará pelo Rio entre junho e julho, não perca, serão várias exposições em diferentes instituições culturais, além de um ciclo de debates sobre mulheres e fotografia no Centro Cultural dos Correios, o Encontro de Inclusão Visual no final de junho e as leituras de portfólio dias 6 e 7 de julho.

Entre aqui para seguir a programação completa do FotoRio.

 

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