Cultura e Pandemia

Como ficará a cultura depois dessa pandemia?

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Não me atrevo a responder essa pergunta, com certeza mudaremos muito. Mas tenho feito algumas observações sobre cultura em tempos de pandemia. Pequenos pensamentos que senti vontade de colocar por escrito.

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Urbe, José Roberto Bassul

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Primeiramente, a fotografia e a cultura são mais do que meu trabalho e ganha pão, são as minhas paixões na vida. Ver exposições, descobrir novos trabalhos fotográficos, abrir um livro de fotografia me dá energia. E vai além, me equilibra e me acalma. Mas e agora, José, o que fazer durante essa pandemia? Ficou tão mais difícil achar meios e caminhos para se energizar.

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Algumas galerias, de vez em quando, conseguem uma brecha e permanecem abertas, resultando em pequenas ilhas de acolhimento em meio a tanto isolamento social. Os livros de fotografia também, a duras penas, conseguem viajar mais do que a gente e aterrissam direto na minha mesa de cabeceira. Aí é quase como vacina: uma espécie de cura em dose única.

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Livro de fotografia “Deus também descansa” de Bruno Bou Haya

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A parte financeira também está difícil. Menos trabalho para os fotógrafos, menos possibilidades de sair na rua, montar equipe… e menos opções de curadoria também! Como alavancar projetos e patrocínios nesse momento que festivais são cancelados, exposições fecham, feiras acontecem online e o dinheiro é escasso? A instabilidade é muito grande.

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Mas tenho visto muito gente aproveitando essa pausa (ou falta de: dinheiro e opção) para rever arquivos, retomar antigos projetos, reeditar livros e zines, criar cursos e diálogos online. O virtual decididamente não é tão bom quanto o presencial mas abre o leque de oportunidades pelo mundo e nos possibilita estar juntos de alguma maneira, resistindo. E no fim, tenho visto muito trabalho novo super interessante e conheci muita gente boa. A leitura de portfólio do FotoRio mesmo, feita virtualmente, acabou criando uma troca única com 40 leitores dos 4 cantos do mundo e com fotógrafos de diversas partes do Brasil.

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Série “Confinados” Iandé com Ana Sábia – “Jogo de paciência”

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Continuemos, juntos, nos inspirando, resistindo, respirando, e com esperança na fotografia e na arte.

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Todos olham sobre nós: fotografia e vigilância digital

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Cada vez mais somos observados: celulares, drones, cameras, circuitos internos e externos… Edward Snowden já nos revelou um mundo onde tem sempre alguém vigiando você. E obviamente, inúmeros fotógrafos resolveram expor esse fenômeno contemporâneo preocupante. Tantos, que o movimento ganhou um nome: “arte da vigilância” (artveillance). Já falamos em um post anterior sobre o artista Yuri Pattison, que trabalha sobre esse tema mas para além da fotografia.

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Algumas das interrogações mais agudas de Snowden, sobre o rastreamento de dados por empresas e pelo governo, são encontradas em galerias e outros espaços de arte. Fundações, grupos de pesquisa e coletivos artísticos se formaram para discutir os limites e desmedidas da vigilância digital: como o Art and Surveillance no Canadá ou a americana Open Society. Seguem 3 fotógrafos que lidam com a falta de privacidade e liberdade individual nos dias atuais.

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@trevor paglen, “Limit Telephotography”, 2007

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O artista americano, filho de militar, Trevor Paglen, é um dos nomes mais famosos associados a esse tipo de trabalho. Como esboçado no post anterior, Paglen há 20 anos tenta mostrar o lado invisível das geografias políticas do nosso tempo. Em seus trabalhos, “Limit Telephotography” e “The black sites”, ele tenta capturar lugares que não estão em mapas: bases aéreas secretas e prisões. Assim como elementos ainda mais impalpáveis como as redes de coleta de dados e vigilância que agora moldam nossas democracias: os satélites e inteligências artificiais do mundo digital.

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O professor de arte de Maryland, o bengali Hassan Elahi foi parado no aeroporto por suspeita de terrorismo em 2002. Desde então ele se auto vigia 24 hrs por dia, com imagens fotográficas e coordenadas GPS, e envia tudo para seu algoz, o FBI. Como diz o próprio artista, dando tantos detalhes ridículos sobre sua vida, ele está dizendo tudo e nada e questionando a eficácia e validade dessas imagens para a vigilância digital.

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seu monitoramento contínuo

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@hassan elahi, little sisters, 2014

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Trabalhando em um cassino americana como encarregada das cameras de vigilância, a fotógrafa Lauren Grabelle acabou se tornando a fotógrafa x. Do monitor das 800 câmeras (!), Lauren podia olhar qualquer indiscrição, seguindo pequenas narrativas humanas no espaço de algumas horas. Seu projeto consiste em prints das tela das cameras, feitos por ela, para questionar a veracidade desse tipo de imagem.

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@lauren grabelle, Look At Me, 1998


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Circulações européias em um festival

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Antes de falarmos do Festival Circulations, gostaria de fazer um ponto sobre a importância dos festivais. Festivais de fotografia são valiosos catalisadores do mercado fotográfico. Mas eles vão muito além disso, sendo estimuladores de ações artísticas, sociais e políticas, de conhecimento e trocas entre os profissionais e o público. Por serem muitas vezes independentes, criam a (única) oportunidade de novos talentos exporem seu trabalho e de diferentes gerações interagirem. Em momentos de precariedade cultural, servem também como palco de debates democráticos, resistência e diversidade.

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No Brasil temos inúmeros festivais de fotografia que persistem – FotoRio, PEF, Foto em Pauta, para citar alguns – e outros tantos que foram criados em 2018, como o Solar em Fortaleza e o Festival de Paranapiacaba em SP. Talvez pela falta de dinheiro e importância dada à cultura esses últimos tempos, os festivais tenham conseguido sobreviver com a ajuda financeira de todos e muito voluntariado. Como uma necessidade urgente de encontro, luta e resistência.

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Vamos ajudar os festivais!

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Antes de continuar para o nosso tema, vale ressaltar que o photolimits e o Iandé estão produzindo uma exposição coletiva brasileira, no festival Rencontres d’Arles, em julho, sobre os rumos atuias do Brasil. E todos nós podemos ajudar a expandir essa exposição para um espaço de debates democráticos, luta e resistência. Basta clicar aqui e apoiar.

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Nessa mesma onda, temos um exemplo francês, o festival Circulations, desde 2011. Resultado da associação Fetart, criada em 2005, o festival é totalmente dedicado ao fomento de novos fotógrafos europeus. Produzido por um grupo de voluntários, com ajuda de financiamento coletivo, em cada edição o festival apresenta uns 40 artistas europeus. Eles escolhem 30 por candidatura online, outos são convidados pela produção do festival e por fim, a cada ano, eles tem alguns fotógrafos indicados por uma escola e uma galeria.

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Esse ano podemos ver o engajamento em vários trabalhos, como do português Miranda Nelson (artista escolhido pela galeria convidada, Adorna Corações), do espanhol Rubén Martin de Lucas ou ainda do grego Yorgos Yatromanolakis. O país europeu em foco é a Romênia. Foi uma boa descoberta observar os trabalhos contemporâneos com fotos de arquivo de Mihai e Horatiu Sovaiala e Ioana Cîrlig, e as imagens de resgate à cultura tradicional de Felicia Simion.

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O festival fica em cartaz até dia 30 de junho no enorme espaço 104, em Paris.

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Um sonho irreal de realidade

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Termina esse fim de semana a exposição do fotógrafo Alex Majoli no Le BAL em Paris. Alex é italiano, fotojornalista da Magnum desde 2001. Entre seus trabalhos, ele cobriu os talibãs no Afeganistão, a invasão do Irak, a primavera árabe, parte do processo político dos últimos anos no Brasil, entre outros assuntos. Sua exposição no Le Bal é de sua série “Scene (cena)” iniciada em 2006.

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Grandes formatos, em preto e branco, se espalham pelas paredes das salas, reunidos geograficamente pelos países fotografados: Brasil, Egito, China, Congo e Índia. A peculiaridade é que Alex usa luz artificial durante o dia para suas imagens parecerem que acontecem de noite. São fotos posadas de eventos de grande importância foto jornalística, que o fotógrafo, ou diretor, teatraliza na noite americana. Personagens que nos são apresentados ao mesmo tempo reais e fictícios.

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@alex majoli, Brasil, 2014

Já falamos por aqui de fotografia e teatro. A arte do teatro pode ser exemplificada como uma interpretação de uma história para uma plateia, com capacidade de iludir e criar simulacros. O espectador sabe que está vendo algo falso mas é envolvido e se deixa enganar. Alex Majoli, em suas imagens, assume o simulacro em duas oposições. De um lado, ele simula a noite no dia, e o real no posado, e por outro lado, ele reforça a idéia de que no mar de imagens que temos acesso hoje, tudo vira um grande teatro. Naufragados nestas ondas enormes de imagens, não vemos mais nada de real.

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“Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la.” – Bertolt Brecht

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@alex majoli, congo, 2013

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Para finalizar, gostaria de problematizar o olhar nas imagens de Alex Majoli. No teatro somos nós que observamos a cena: o público sentado na platéia. Nas fotografias de Alex, olhamos os personagens apresentados, como em um teatro, mas esses personagens também existem na realidade. Durante a noite e no meio das zonas de conflito, as máscaras caem. Com isso, todos nós perdemos nossas referências: tanto a platéia quanto os personagens em cena. Nessa transgressão desenvolvida pelo fotógrafo, existe a possibilidade da inversão de papéis. Não é mais o público que observa, mas é observado pelos personagens presentes.

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Sob a máscara da noite, dentro da esfera da inquietude, Alex nos coloca fora de campo para transgredirmos as fronteira do olhar.

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@alex majoli, china, 2017

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@alex majoli, índia, 2015
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Harry Shunk e János Kender, fotógrafos de uma época

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Já falamos aqui sobre fotografia e performance. Inclusive, mencionamos os fotógrafos tema do artigo de hoje: Harry Shunk e János Kender. Ativos entre os anos 50 e 80, entre Paris e Nova Yorque, esses dois fotógrafos se especializaram no universo artístico. Trabalharam para inúmeros artistas da época, contratados para documentar performances, happenings, vernissages, além de momentos mais íntimos da criação. Reuniram documentos de toda a efervescência cultural que acontecia nos dois principais polos de arte mundiais. Ao lado de artistas da contra cultura, como Andy Wahrol e Yayoi Kusama, exploraram novas formas de experienciar a arte e participaram de mudanças de pensamento.

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@Shunk -Kender, Yayoi Kusama, 1968

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@Shunk-Kender, Andy Wahrol, 1965

Shunk é alemão e Kender húngaro. Eles se encontram em 1957 na galeria Iris Clert, em Paris. Um ano antes de conhecerem Yves Klein e fotografarem sua primeira performance antropométrica no dia 5 de junho de 1958. Ao longo dos anos muitos outros nomes passaram pelas lentes desses dois fotógrafos: Niki de Saint Phalle, Claes Oldenburg, Jean Tinguely, Merce Cunningham Dance Company, Alan Kaprow, Yves Klein, Robert Rauschenberg e Armam.

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Suas imagens não só participam de um momento de desenvolvimento de novas práticas artísticas, mas também de um momento importante no processo da própria fotografia. Foi uma época onde as fronteiras se abriram, e as diferentes mídias artísticas se misturaram com mais facilidade. A vontade era de fazer uma arte mais viva, liberar o corpo e o gesto artístico. Queriam aproximar o público, a natureza, trabalhar com mais improvisação e de maneira efêmera.

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@Shunk-Kender, Christo e Jeanne-Claude, Wrapped Coast, 1969

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E graças aos dois amigos, Shunk e Kender, essa efemeridade tomou corpo e hoje podemos ver o que lemos nos livros de história. Porém os dois fotógrafos não são apenas documentaristas, eles criam com a originalidade de seus objetos. E participam nos questionamentos, como por exemplo com a fotografia de Yves Klein pulando no vazio. Além das performances, o acervo de Shunk-Kender tem inúmeros retratos e momentos de intimidade de cada artista.

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O centro Pompidou adquiriu 2000 impressões originais do acervo de Shunk-Kender e consacra a primeira retrospectiva dos fotógrafos numa exposição gratuita até 5 de agosto de 2019.

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@Shunk-Kender,Yves Klein, estudo leap into the void, 1960

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@Shunk-Kender,Yves Klein, estudo leap into the void, 1960

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@Shunk-Kender,Yves Klein, estudo leap into the void, 1960

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