Fotografia e América Latina

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Fico bem feliz em ver cada vez mais ações que promovam o diálogo entre fotógrafes latinoamericanes. É verdade que faz tempo que existem inúmeras ações nesse sentido. Em 1978, se deu, no México, o Colóquio Latinoamericano de Fotografía, ¿Adónde vamos?, produzido pelo Foto Museo Cuatro Caminos e Fundación Pedro Meyer. Até 1978 não havia “Fotografia Latino-Americana”, não porque não existisse produção fotográfica nos países do sul, mas sim porque a junção dos termos com uma idéia objetiva de se compreender a produção fotográfica latino americana como possuidora de qualidades particulares não tinha sido proposta, e a tentativa de entender esse produto imagético como parte de uma evolução histórica tampouco tinha sido empreendida.

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Depois desse ponta pé inicial o conceito de fotografia latino americana se consolida e temos outros eventos que acontecem, inclusive no Brasil, como o Fórum Latino-Americano de Fotografia. Herança do colóquio mexicano, o Fórum acontece desde 2007, e se dedica a esse diálogo e essa construção da identidade latino-americana a partir da imagem fotográfica.

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©Mara Sanchez Renero from the series, Iluikak

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Como afirma a curadora Maíra Gamarra, “a partir da inauguração dos Colóquios Latino-Americanos de Fotografia, a fotografia latino-americana se insere no cenário regional e global como um novo cânone que viria a se consolidar e, consequentemente, levantar uma série de questões polêmicas e controversas sobre a configuração hegemônica da fotografia mundial, colocando em xeque o monopólio europeu e norte-americano no circuito fotográfico”.

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Após essa breve introdução histórica, acho que a primeira pergunta que me vem a mente é: mas existe algo que nos une? Não tenho uma resposta clara e objetiva, mas acredito que tenhamos várias narrativas que nos perpassam e que esses diálogos crescentes são sempre enriquecedores e frutíferos. Temos em comum o olhar imperialista que marcou nossa história, temos nações construídas a partir de um “mosaico racial, de ascendências que nos foram apagadas, não só a negra, mas também a indígena”. Temos resistência a ditaduras fortíssimas e governos populistas. Enfim, temos muito o que conversar, mesmo que seja em portuñol!

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Nascimento de Vênus, ©Moara Tupinambá

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“Existe uma cultura visual que nos assimila e nos assemelha, pois temos problemas e soluções semelhantes, diante de questões econômicas, sociais, políticas e de relacionamento com o mundo, com o contexto social”, Andrea Jösch (fotógrafa e curadora chilena)

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Nos últimos eventos que participei, as leituras de portfólio e as lives do FotoRio 2020 e o festival FFALA – Festival de Fotógrafas Latino Americanas, pude perceber que a língua não é um obstáculo à comunicação. Com um pouco de esforço e atenção, nos entendemos. E percebo também uma curiosidade mútua com a produção contemporânea. O que estamos fazendo? Como podemos nos ajudar?

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Eu me descobri latino americana depois de passar um tempo fora do Brasil. E com isso veio a vontade de entrelaçar experiências e descobrir nossas semelhanças e nossas diferenças também.

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The entrance of the old Pantheon of Yalálag, 2017. Ermita en la entrada del antiguo panteón de Yalálag, Enero, 2017.
©Rosana Paulino, 1997

*foto da capa de Lujan Agustí

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O avesso da história da fotografia

Republican Militiawoman on a beach, Barcelona, Spain, August 1936 Gerda Taro & Robert Capa © International Center of Photography

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Ultimamente tenho pesquisado muito sobre mulheres fotógrafas ao longo da história da fotografia. E tenho compartilhado na minha conta do insta. Como já cantou minha querida Mangueira em 2019, “deixa eu te contar a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar, na luta é que a gente se encontra”. As mulheres foram deliberadamente apagadas da história da fotografia. Enquanto os homens são lembrados constantemente, quem sabe que Anna Atkins foi a primeira pessoa a produzir um livro de fotografia em 1841? Um não, ela fez à mão, em cianotipia, durante 10 anos, em torno de 400 exemplares do livro British Algae : Cyanotype Impressions.

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Aqui o papo já é comum mas não custa lembrar: obviamente que muitas mulheres contribuíram consistentemente para história fotografia. No entanto, apesar de sua presença significativa, as mulheres ocupam um lugar relativamente pequeno entre os principais premiados, nas editoras de destaque, nas exposições de sucesso e entre os heróis da fotografia, em comparação com seus colegas do sexo masculino.

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Qual a história da fotografia que queremos escrever?

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Como a incrível Gerda Taro (Gerta Pohorylle, 1910 – 1937). Judia e alemã, Gerda foi uma ativista anti nazismo e fascismo. Em 1933, com 23 anos, após a chegada do Partido Nazista ao poder, Gerda é presa e detida por distribuir propaganda contra o governo. Ela foge para Paris logo depois. Em Paris ela conhece o o fotógrafo húngaro de origem judaica, Endre Friedman. Eles se apaixonam e ele a ensina a fotografar. Ela começa sua carreira de fotógrafa como assistente da Alliance Photo, agência criada por Maria Eisner, Pierre Verger et Pierre Boucher. Em 1936, Gerda recebe sua credencial de fotojornalista.

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Para escapar do anti-semitismo crescente na Europa, e vender melhor suas imagens, Gerda cria um personagem fictício chamado Robert Capa: um fotógrafo americano contemporâneo de sucesso. Seu companheiro endossa perfeitamente o personagem, e ela acaba criando um nome para ela também.

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Logo depois o casal resolve documentar o início da Guerra Civil Espanhola. Taro e Capa acompanham as batalhas das Brigadas Internacionais ao lado de combatentes republicanos, como fotógrafos de guerra. Ela é reconhecida como a primeira fotógrafa de guerra. Enquanto eles assinam suas fotos com seus dois nomes, Capa ganha bem mais reconhecimento mundial enquanto o trabalho de Taro permanece na sombra. Ela decide então partir sozinha para cobrir o bombardeio de Valência e vender seu trabalho apenas com seu nome.

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Ela morre em plena guerra aos 26 anos, em 1937.

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No dia 1 de agosto de 1937, dia de seu aniversário de 27 anos, um pouco depois de sua morte, mais de 10 mil pessoas se reúnem no cemitério Père Lachaise para celebrar a figura de Gerda. Estão presentes Pablo Neruda, Louis Aragon, Endre Friedman/ Robert Capa, Alberto Giacommenti (que esculpiu sua tumba) e tantos outros. Me digam, como essa mulher pode ser esquecida ?

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Seu grande amor, com a ajuda de seu irmão mais novo, foram decisivos no apagamento de Gerda Taro da história. Seus negativos foram todos vendidos como sendo de Robert Capa. Como ela não tinha nem família, nem herdeiros, ninguém reclamou. Ela só ressurge na linha do tempo em 2007, quando uma mala do laboratorista de Capa, com mais de 4500 negativos, é encontrada no México. Dentre tantos negativos, 800 são delas, devidamente assinados. O mundo descobre assim, através destas fotografias inéditas (e depois da morte de seu companheiro) uma mulher corajosa, mas acima de tudo uma grande fotógrafa.

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Fica a minha pergunta, em que universo, essa história fantástica de Gerda seria esquecida se ela se chamasse Hans? No nosso universo ao avesso.

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Cindy Sherman como um espelho da nossa sociedade

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Nesse ano conturbado que estamos vivendo, é um luxo poder ver a retrospectiva do trabalho fotográfico de Cindy Sherman na Fondation Louis- Vuitton, apesar dos meses de atraso. São 4 andares, muito bem montados, com impressões perfeitas, onde vemos tanto imagens pessoais de acervo próprio como sua primeira série em P&B – Untitled Film Stills – seus grandes formatos mais recentes ou ainda seus autorretratos do instagram em tapeçaria. Um longo trajeto pelos 50 anos de uma carreira que começou no fim dos anos 70 e que continua bastante movimentada até hoje. Com raríssimas exceções, o tema é sempre o mesmo: o autorretrato.

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A artista é tudo: modelo, maquiadora, cenógrafa, técnica, atriz, iluminadora e fotógrafa. Como na mágica, ela tem total controle sobre seus truques e o que ela deseja apresentar ao público. Perucas, maquiagem, cenários, fantasias criam um ambiente cada vez diferente e transformam a artista em diferentes personas. Entre realidade e ficção, ela incarna poderosos e complexos personagens do nosso cotidiano. Somos confrontados a pessoas que cruzamos, ideias preconcebidas: um pouco de nós mesmos.

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Nós espelhados nela

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Suas imagens são calculadas e fabricadas de acordo com a decisão da artista. Ela passa pelo imaginário do cinema, da pintura clássica, dos contos de fadas, da moda, da sociedade, do feminino e do masculino, das mídias sociais. Ela desconstrói os arquétipos, brinca com os códigos, distorce as certezas. Como sua série “Untitled Film Stills” de 1977 onde ela se representa como heroínas de filmes fictícios dos anos 50 e 60. Ela chama atenção para o papel da mulher na mídia e da mulher diante do olhar masculino. O desejo sexual e a dominação, a modelagem de uma identidade de acordo com a cultura de massa, essas são algumas críticas de Sherman. Seu trabalho é uma conversa direta com a nossa sociedade de consumo intenso e de proliferação da imagem.

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Não é à toa que ela entrou de cabeça no instagram, como já havíamos mostrado aqui no site. Diferente de seu extenso cuidado com as fotos em estúdio, o instagram de Sherman é mais simples, com imagens do dia a dia, banais, e uso de muitos efeitos. Usando de muito exagero, ela afirma em sua conta online que nunca somos nós em nossos selfies. Os papéis, os personagens e as aparências que tomamos nas mídias sociais somos nós mesmos que impomos e realizamos, nos transformando. Assim como ela ao longo de seus trabalhos. Mas a maior ironia disso tudo é que nem percebemos.

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Cindy Sherman soube envelhecer muito bem. O autorretrato pode ser uma maneira bastante agressiva de acompanhar o seu próprio envelhecimento. Mas ela soube incorporar suas rugas em seus ensaios, e com um certo humor, usar isso em seus novos personagens. Além disso, percebeu muito bem as novas mídias de auto – representação (o instagram e os selfies) e se apoderou, trazendo suas discussões para questões contemporâneas.

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Harry Shunk e János Kender, fotógrafos de uma época

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Já falamos aqui sobre fotografia e performance. Inclusive, mencionamos os fotógrafos tema do artigo de hoje: Harry Shunk e János Kender. Ativos entre os anos 50 e 80, entre Paris e Nova Yorque, esses dois fotógrafos se especializaram no universo artístico. Trabalharam para inúmeros artistas da época, contratados para documentar performances, happenings, vernissages, além de momentos mais íntimos da criação. Reuniram documentos de toda a efervescência cultural que acontecia nos dois principais polos de arte mundiais. Ao lado de artistas da contra cultura, como Andy Wahrol e Yayoi Kusama, exploraram novas formas de experienciar a arte e participaram de mudanças de pensamento.

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@Shunk -Kender, Yayoi Kusama, 1968

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@Shunk-Kender, Andy Wahrol, 1965

Shunk é alemão e Kender húngaro. Eles se encontram em 1957 na galeria Iris Clert, em Paris. Um ano antes de conhecerem Yves Klein e fotografarem sua primeira performance antropométrica no dia 5 de junho de 1958. Ao longo dos anos muitos outros nomes passaram pelas lentes desses dois fotógrafos: Niki de Saint Phalle, Claes Oldenburg, Jean Tinguely, Merce Cunningham Dance Company, Alan Kaprow, Yves Klein, Robert Rauschenberg e Armam.

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Suas imagens não só participam de um momento de desenvolvimento de novas práticas artísticas, mas também de um momento importante no processo da própria fotografia. Foi uma época onde as fronteiras se abriram, e as diferentes mídias artísticas se misturaram com mais facilidade. A vontade era de fazer uma arte mais viva, liberar o corpo e o gesto artístico. Queriam aproximar o público, a natureza, trabalhar com mais improvisação e de maneira efêmera.

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@Shunk-Kender, Christo e Jeanne-Claude, Wrapped Coast, 1969

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E graças aos dois amigos, Shunk e Kender, essa efemeridade tomou corpo e hoje podemos ver o que lemos nos livros de história. Porém os dois fotógrafos não são apenas documentaristas, eles criam com a originalidade de seus objetos. E participam nos questionamentos, como por exemplo com a fotografia de Yves Klein pulando no vazio. Além das performances, o acervo de Shunk-Kender tem inúmeros retratos e momentos de intimidade de cada artista.

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O centro Pompidou adquiriu 2000 impressões originais do acervo de Shunk-Kender e consacra a primeira retrospectiva dos fotógrafos numa exposição gratuita até 5 de agosto de 2019.

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@Shunk-Kender,Yves Klein, estudo leap into the void, 1960

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@Shunk-Kender,Yves Klein, estudo leap into the void, 1960

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@Shunk-Kender,Yves Klein, estudo leap into the void, 1960

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Luigi Ghirri, mapas e territórios

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Conheci o fotógrafo italiano Luigi Ghirri (1943-92) nessa exposição no IMS-Rio em 2014. Me apaixonei, comprei catálogo, pesquisei e teria escrito aqui sobre ele se na época já tivesse esse cantinho para pensar um pouco mais sobre a fotografia. Hoje visito outra retrospectiva do grande fotógrafo no Jeu de Paume em Paris, e aproveito para relembrar a minha primeira impressão.

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Topógrafo de formação, Ghirri começou tardiamente como fotógrafo de fim de semana nas ruas de Modena, Itália. Fotografava cenas comuns, simples das ruas, lojas e bairros da cidade, sempre em cor. Suas imagens são frontais, diretas, sempre usando lentes normais, sem zoom ou objetivas, e com o humano em segundo plano (são apenas passantes). É um homem de seu tempo, tendo seu olhar captado sobretudo pelas mudanças de sua era: as novas formas de entretenimento, de comunicação e de moradia. Esse é o personagem principal de suas imagens: a cidade em transição.

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@Luigi Ghirri, Orbetello, 1974

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@Luigi Ghirri Atlantida, 1973

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Com pouca tradição fotográfica na Itália, Ghirri buscou inspiração em outros movimentos artísticos, em suas viagens, fotógrafos internacionais como Paul Strand e Edward Steichen e na sua formação de topografia. Em sua série “Atlantida”, por exemplo, ele fotografa mapas de um atlas de perto descaracterizando a representação do território e criando novos lugares mais ligados à imaginação. Em outra de suas séries, “Paisagens de cartão”, ele mostra a ambigüidade da imagem fotográfica na representação da realidade. Em “Kodacromo” expande para os sinais, cartazes e painéis que habitam o urbano e como interagimos com tantas referências visuais.

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“Eu me interesso pela arquitetura efêmera, pelos objetos considerados de mau gosto, kitsch, mas que, para mim, nunca foram, são objetos carregados de desejos, sonhos, memórias coletivas […]”. – Luigi Ghirri

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@Luigi Ghirri Rimini, 1977

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Luigi Ghirri tem um fascínio pelas representações do mundo: suas reproduções, imagens, cartazes, modelos e mapas, e com a maneira como essas representações se encaixam no mundo. Pois são símbolos com uma dimensão estética e política. Estética porque formam superfícies coloridas surpreendentes que refletem um sonho difuso de conforto e segurança. E política porque traduzem um projeto de sociedade baseado no consumo em grande escala e no culto do mercado.

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Ou seja, Ghirri apesar de ser um homem de seu tempo, e um italiano de Modena, foi direto à essência das mudanças de nosso tempo, no mundo. Temas que ainda são atuais hoje, pois estão muito mais presentes e em muito mais abundância. De maneira extremamente sutil e elegante, ele objetiva o que é tão complicado.

*A exposição “Luigi Ghirri, mapas e territórios” fica em cartaz no Jeu de Paume até 02 de junho de 2019.

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@Luigi Ghirri Modena, 1973
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