Objetos achados: a fotografia e o ready-made

Para quem ainda não sabe, escrevo mensalmente no site da editora Subversos. Especializada originalmente em publicações psicanalíticas, a editora foi se abrindo para uma troca com outras areas, e hoje dialoga com diversas visões e especialidades, como a política, a literatura e, claro, a nossa querida fotografia.

 

Todo mês escolho um fotógrafo e falo sobre sua vida, suas referências, além das questões que suas imagens me trazem. Mês passado escrevi sobre Man Ray e a fotografia surrealista, contando um pouco de suas peculiaridades e fazendo um paralelo com o inconsciente psicanalítico. Ficou curioso? Acesse o link aqui e confira o post todo.

 

Man Ray e Marcel Duchamp, NY, 1914

O americano Man Ray foi muito próximo do artista vanguardista francês Marcel Duchamp, trabalharam juntos, desenvolveram teorias e colaboraram em diversos projetos.  Os dois foram apresentados em 1915, pelo marchand Walter C. Arensberg nos EUA.

 

Entre seus projetos em comum, estão os ready-made. O primeiro ready-made, “achado” por Duchamp, data de 1913 e consiste em uma roda de bicicleta colocada em cima de um banquinho, que só faz girar. Man Ray também criou outros tantos ready-made, os mais famosos seriam o ferro com pregos, ou o metrônomo com um olho. O conceito básico dos ready-made é tirar o objeto do mundo real com total indiferença e evidenciá-lo para o mundo. Porém, independente da vontade do artista, quando retirados objetivamente do mundo material, esses objetos acabam por entrar em um mundo particular, ganhando subjetividade, símbolos e significados.

 

Enigma de Isidora Ducasse, Man Ray. 1920

 

Roda de bicicleta, Marcel Duchamp, 1913

 

Encontramos assim o que seria praticamente o significado da própria fotografia, retirar do mundo objetivo uma imagem pessoal e subjetiva que ganha novas definições e alegorias. Os dois lidam com a apropriação do objeto de uma só vez, transformando o objeto e a imagem em novo símbolo da imaginação, que não experimenta uma resistência do mundo material. Duchamp perpassa esses conceitos para explicar seus ready-made – que ele também chama de múltiplos objetos ou objetos achados pelo mundo. E a fotografia afinal é isso, um objeto achado. Um fotógrafo cria a sua imagem a partir de alguma imagem pré-existente no mundo, a foto é basicamente uma imagem encontrada.

 

Essa é a ideia que Duchamp coloca em prática nos ready-made, objetos encontrados no mundo: réplicas. E as réplicas são múltiplas, assim como a fotografia, múltiplas na infinidade de possibilidades e questionamentos.

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Man Ray, fotografia, surrealismo e inconsciente

Por volta de 1910, através do experimentalismo dos movimentos de vanguardas modernistas, como os dadaístas, os futuristas, os construtivistas, além dos surrealistas, a fotografia e a pintura resolveram dialogar. A fotografia tentou se desligar de um enfoque pictorialista, de uma abordagem estética mais tradicional e enveredar por uma linguagem própria. E para todos os movimentos vanguardistas, a fotografia era uma chance de explorar uma linguagem em desenvolvimento, ligada à modernidade, livre e aberta para um vasto campo de possibilidades.

 

A maioria dos artistas modernos enveredou pela experiência da linguagem fotográfica, mas foi talvez no espírito surrealista que a fotografia desempenhou seu papel mais influente.

 

Os surrealistas desenvolviam projetos voltados para uma visão mais pessoal do fotógrafo e com uma vontade de quebrar a estreita relação com o referente. Era uma tentativa de fazer a fotografia ganhar ares mais abstratos e conceituais e, com isso, mostrar um movimento da vida interior das coisas. Um exemplo são as experiências com o fotograma do fotógrafo Man Ray. Ele abriu o campo da fotografia, experimentou processos especiais no fotograma como a solarização e a montagem de negativos e, inclusive, reinventou o fotograma, o batizando de rayograma.

 

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Ele também criou um estranhamento frente ao real utilizando diferentes enquadramentos e cortes – como o close –up – e tratamentos de luz não-convencionais. Todos esses artifícios rompem com os parâmetros da realidade (ainda mais para época) e liberam a mente e a criatividade. As fotografias de Man Ray apontam para uma surpresa frente ao óbvio, uma intuição desprevenida, uma interioridade do sujeito, um desvelamento de uma essência pré–visual, um afloramento do inconsciente. E aqui encontramos o conceito de inconsciente psicanalítico. Esse inconsciente, de maneira geral, seria uma esfera psíquica não atrelada à racionalidade do cotidiano e onde brotariam esferas mais subjetivas e mais intuitivas da mente, como nossas paixões e nossa criatividade.

 

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Os surrealistas dialogavam com a relação da fotografia e seu referente de outra maneira. Para eles, explica a crítica de arte americana Rosalind Krauss em seu livro O Fotográfico, a natureza era vista como um signo e a fotografia como uma escrita do inconsciente dessa natureza. Ou seja, a fotografia surrealista queria tentar revelar o lado oculto da realidade, como se a realidade, por meio da fotografia, se transformasse em uma visão diferente dela mesma. Podemos associar esse conceito com a noção de escrita automática dos surrealistas, que era tida como uma escrita direta do inconsciente.

 

A fotografia surrealista era uma tentativa de abstrair, de fotografar o pensamento interior, as próprias ideias. O tempo apresentado passa a ser o tempo interior, do inconsciente. A fotografia, para os surrealistas, seguindo as ideias da psicanálise de Lacan, seria uma expressão pré-verbal do imaginário, uma manifestação do inconsciente, algo como a visão da consciência em si, antes da razão e do intelecto quebrarem com a inspiração original.

 

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