E agora, sem memória, quais as nossas opções?

Não posso deixar de comentar a tragédia que abriu o mês de setembro: o incêndio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A instituição de 200 anos tinha um extenso acervo que continha documentos da realeza, fósseis, múmias, livros de antropologia, itens indígenas… Eram milhões no acervo! Enfim, uma parte de nossa história e da nossa memória devastados!

 

Já faz tempo que o Brasil (e parte do mundo) vem querendo esquecer a história, a cultura, o bom senso, a empatia, a dignidade. E como criar um futuro sem todas essas referências? Infelizmente, agora, apenas com medidas paliativas.

 

Ricardo Moraes, Reuters

 

Em uma tentativa de juntar os cacos, alunos e pesquisadores da UNIRIO estão atrás de imagens do acervo do Museu tiradas pelo público. A materialidade dos objetos e obras se perdeu para sempre. Contudo, a fotografia pode ajudar numa retomada virtual desse acervo. É uma maneira de reparar, de reagir, de repassar para futuras gerações e de relembrar. Não é a melhor maneira, mas agora, depois da tragédia, é a única.

 

Fotografia, documento e história sempre andaram muito junto.

 

No meu post de agosto do Ateliê Oriente, falo justamente das imensas possibilidades de inovação que a fotografia e a tecnologia tem ao se juntarem. A realidade virtual pode explorar os limites da imagem, da arte e da museologia. Novos caminhos podem ser tomados perpassando ideias como um acervo virtual expandido e detalhado. Ou um catálogo virtual mais democrático e de fácil preservação… Oportunidades que expandam a cultura, aumentando e diversificando o acesso. Como digo no post, inúmeras pessoas estão explorando e pensando os novos rumos e possibilidades da tecnologia. Inclusive no Rio de Janeiro, a nova Casa Firjan está discutindo novas oportunidades que perpassam a memória e a história.

 

Museu do Índio no Google Arts & Culture

Um exemplo interessante, é o próprio Google arts & Culture que disponibiliza acervos de museus do mundo todo. Além do acervo, ainda existe a possibilidade de ver detalhes da obra, ler sobre o autor, relacionar com outras obras da mesma época… Nesse momento minha dor estaria um pouco mais apaziguada se o acervo do Museu Nacional fizesse parte desse projeto.  Mais uma vez digo, não é a solução. Mas é uma alternativa interessante, que abre novos caminhos que ainda estamos explorando e descobrindo.

 

Porém, nada disso é viável com a mentalidade atual de corte de gastos com a tecnologia, a cultura e a ciência. Mas vamos imaginar, e lutar, por um futuro diferente.

 

MET, 1988, Elliott Erwitt | Magnum Photos
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A simplicidade de um olhar: a nova objetividade de Albert Renger-Patzsch

A linda exposição de Albert Renger-Patzsch fica em cartaz no Jeu de Paume em Paris até janeiro de 2018. Fotógrafo de nome difícil e olhar suave, o alemão Albert participou do movimento da nova objetividade nos anos 20. Movimento pós guerra, que surgiu na Alemanha como resposta ao Expressionismo e seu subjetivismo, a Nova Objetividade queria trazer de volta um realismo nas artes.

 

“It’s important to see things the way they are.” (Otto Dix, pintor da Nova Objetividade)

 

Cobra, 1927

 

Na fotografia, esse movimento teve uma dimensão anti-pictorialista, querendo trazer a tona a objetividade da mídia fotográfica. Albert foi um grande nome a frente desse movimento, e conseguiu dentro da precisão do meio e suas caraterísticas miméticas, acrescentar um olhar belo as suas imagens. Sua identidade estética testemunha de um rigor técnico e formal que usa a camera para intensificar a nossa visão e consciência de realidade. Ele consegue trabalhar com o fundamental da fotografia para criar. Justamente por isso, por sua simplicidade e sobriedade, em um estilo quase documental, suas imagens são tão fortes.

 

Ruhr e Möhne, 1936

Sua retrospectiva em Paris, consegue abarcar suas fases e seus diferentes objetos de estudo: como as plantas, as paisagens alemãs, os objetos industrias e a arquitetura. São diferentes temas mas apenas um foco principal: o estudo da fotografia. Em suas pesquisas conceituais, Albert consegue conjugar a potencialidade criativa e artística da fotografia com seu lado técnico e mecânico.

 

Durante sua vida, lançou vários livros. O que mais me chamou atenção foi seu livro “O mundo é belo” de 1928. Numa representação realista do mundo, através de ângulos de visão criativos e inusitados, Albert nos apresenta monumentos, estruturas industrias, objetos, natureza, paisagens: o mundo de formas que ele descobriu. Um inventário universal e uma bela surpresa para os leitores. Mesmo entre duas guerras, as imagens de Albert parecem extremamente positivas, quase abstratas à realidade intensa daquela época, senão fosse por seu compromisso com a realidade.

 

Essen, 1929

 

Floresta Spruce, 1951

 

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Sophie Calle, entre caça e caçador

A artista e fotógrafa francesa Sophie Calle está com uma estupenda exposição no museu da Caça em Paris. Em uma antiga casa de 3 andares, ela cria um jogo de rastros e pistas, onde vamos descobrindo as pegadas da artista contemporânea no meio do acervo de animais empalhados. Ela é a caça e somos os caçadores? Talvez. A experiência é bastante rica e sem notarmos, esse jogo nos aproxima mais da fotografia e suas fronteiras.

 

A exposição, com alguns trabalhos antigos da carreira de Sophie, é feita como homenagem ao seu pai que morreu. Morte, capturar a presença e a memória, perseguir histórias e imagens, apreender, aprisionar, fantasmas são alguns termos que rastreamos ao longo da exposição: através das obras da artista, da coleção do museu e das questões em torno da fotografia.

 

 

O cinema é a vida, a fotografia é a morte. – Susan Sontag

 

O trabalho de Sophie Calle tem uma estreita relação com sua vida pessoal. Ela dormiu no topo da Torre Eiffel (durante a primeira Nuit Blanche em 2002), passou a noite em uma cabine de pedágio na rodovia perguntando aos motoristas onde podiam levá-la, foi stripper, contratou um detetive para segui-la por vários dias, seguiu um homem aleatoriamente, pediu para estranhos dormirem com ela, e transformou tudo isso em obras de arte. Anos antes trabalhou com a morte da sua mãe: leu o diário da sua mãe em público, e filmou a morte de sua mãe, seu último suspiro, com seu acordo. Agora chegou a vez de lidar com a morte do pai. Ela caça esse novo rastro perdido.

 

O início da exposição trás a fotografia de um urso branco, que fica na entrada do museu, encoberto por um grande lençol branco, como um fantasma. Fácil de relacionar a morte com a fotografia; depois que a pessoa se foi, e fica apenas sua lembrança e suas fotografias – seus fantasmas – será que nos lembramos mesmo de como era a pessoa? De sua alma? A fotografia interpreta um momento, mas não mantém a pessoa amada conosco, a vida continua. A fotografia torna-se um lembrete constante de que o tempo passou e não voltará, que a pessoa se foi e não voltará.

 

A exposição continua com a presença da morte. Em um quarto com os ares de mausoléu, nossos olhos cruzam o próprio túmulo de seu pai recentemente falecido. Vemos também o que seria a última fotografia de seu pai, na FIAC, e um texto que explica o porque dessa foto ter sido tirada: “porque ele estava sorrindo. Porque na pintura atrás estava escrito silêncio…”.  É uma imagem singela, de nenhum significado para o público, fugaz, com alguns detalhes importantes do pai para a filha, mas tão aquém do que ele era, e tão pouco diante da ausência desse pai.

 

Em Mes morts (2017) Sophie transporta as pessoas que ela ama, mortos ou vivos, simbolicamente em animais empalhados, os personificando dentro dessas peles de animais. Como a fotografia: uma pele de uma imagem empalhada. Mes Morts é acompanhado por Deuil pour deuil (2017), uma instalação em que Serena Carone representa sua amiga Sophie em tamanho natural, como uma efígie mortuária, e todos os seus amados empalhados ao redor. 

 

 

Várias são as ideias que surgem quando pensamos em fotografia e morte. Mas qual seria a memória fotográfica? Não tenho resposta certa, mas diria que passa por uma prática humana natural, a necessidade de manter a memória do ente querido viva. Na língua latina “imago” significava o molde em cera do rosto dos mortos que era colocado em nichos em casa. Guardamos nossos porta retratos ou transformamos em instalações.

 

 

 

*a exposição Sophie Calle e sua convidada Serena Carone fica em cartaz até fevereiro 2018.

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Diálogos: literatura e fotografia

Ando com vontade de dialogar. Acho que o entorno tem favorecido a esse anseio. Com isso, propus a uma grande escritora, e também blogueira do Chez Maiato, um diálogo entre campos artísticos: literatura e fotografia. A proposta funcionou da seguinte maneira: a partir do tema REAL a escritora Renata Maiato escreveu o texto Despedida e com esse tema em mente, e suas palavras, eu tive que pensar em imagens que acrescentassem. Me inspirei no olhar do fotógrafo Julio Bittencourt para entrar nessa discussão.

 

Julio Bittencourt, Numa janela do edifício Prestes Maia, 911, 2006

 

Despedida

Aqui, do meu lugar, posso falar das coisas que eu sei. Do que vivi e que busquei, de todas as coisas que aprendi e o que você me ensinou. Sei da chuva que secamos, e da felicidade maior, sei que ela existe. Olho para sua imagem talhada no altar e vejo a vida, meu passado e meu futuro, meu presente escancarado, tudo aquilo que me brota.

Desde que voltei sinto diariamente os efeitos daquele lugar. Com dificuldade ando pra frente, porém com o olhar curvo, buscando uma página anterior. Quase não me reconheço aqui, onde foram parar tantos medos? A verdade é que ainda me sinto só. Ninguém jamais vai saber ou entender o que mudou do lado de dentro. É como se meu desejo de abrir o coração finalmente tivesse acontecido e agora está tudo muito concreto, muito certo, muito real.

 

Real demais.

 

Despeço-me de quem fui sem dor, como histórias de cristal que se quebram facilmente. A separação se faz, assim, do inimaginável. Da necessidade de correr, da vontade de viver, da vontade de morrer, assim, de tanta vida. É tudo tão raso, papéis, funções, egos; o que sangrava mesmo por dentro? Despeço-me de minhas dores abafadas pelo êxtase, tenho amores e incertezas agarrados nas entranhas. Não entendo do caminho das almas, mas sei que as nossas andam juntas.

O olhar sereno confessa minha fraqueza. Porque você representa tudo o que me assusta; amor, sossego, uma noite tranquila. Sou dada aos grandes saltos, enxergo melhor no escuro, busco o incerto. Acostumei-me com a inquietude, estranho a calma dos seres e dos tempos. Inventei enredos, desenhei histórias, teci labirintos em todo verso para enfim achar o que sempre esteve aqui. É que viver sã estava lírico demais.

 

A realidade me arrebatou.

 

Deitada em seu colo, adormeço. É estranho e deliciosamente leve viver em paz.

 

Julio Bittencourt, Ramos, 2008

 

Julio Bittencourt, Daidokoro, 2013

 

Julio Bittencourt, Algumas coisas são perdidas para jamais serem encontradas, 2011

 

Julio Bittencourt, Citizen X, 2009

 

Julio Bittencourt é paulista, já ganhou vários prêmios, publicou alguns livros e tem trabalhos clicados entre o Japão, EUA e Brasil, dentre eles Daidokoro, Citizen X, Numa Janela do Edifício Prestes Maia, 911 e Ramos. Seus trabalhos retratam ruínas e abandono, tanto de um ponto de vista material, quanto humano. Suas imagens falam de despedidas, afetos e memórias que ficaram para trás. Resquícios de uma realidade real demais.

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Mitologia e fotografia

Na mitologia grega, as musas são as filhas de Zeus e Mnemose (a Memória). Elas seriam as divindades responsáveis por inspirar as atividades artísticas e a ciência. Elas são 9 – Calíope, Clio, Érato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Terpsícore, Talia e Urânia – e vivem em um templo que se chama Museion, que curiosamente deu origem a palavra Museu.

 

Algumas interpretações dos mitos gregos dizem que o dom de Mnemose, a memória, é conduzir o côro das Musas e, confundindo-se com elas, presidir a função artística. A arte, através das Musas, incitaria de delírio divino o artista e esse se transformaria no intérprete de Mnemose, aquela que tudo sabe.

 

Alair Gomes

 

No contexto mítico, lembrar significa resgatar um momento originário e torná-lo eterno. A memória confere imortalidade àquilo que ordinariamente estaria perdido de modo irrecuperável. Traz de novo a presença dos Deuses no mundo e nos coloca em relação com nossos antepassados, nossa história em comum, aquela que nos faz o que somos.

 

O lugar da memória é o lugar da imortalidade, ela liga os tempos e o que de fato é importante, como a fotografia. A arte abriga obras produzidas no passado e deixadas para as gerações, ligando os tempos e ajudando o papel da memória. A fotografia ainda vai além, ligando momentos, rostos, situações do passado ao presente. Diferente do que é difundido, o trabalho das musas é ativo (e não passivo), uma parceria entre a memória e as artes para lembrar o que somos através do tempo.

 

Na fotografia temos inúmeros exemplos de musas e musos que inspiraram lindas imagens, como Irving Penn e Lisa Fonssagrives, Franco Rubartelli e Veruschka, Jean Shrimpton e Catherine Deneuve. Ou ainda, Sally Mann e Larry, Robert Mapplethorpe e Sam Wagstaff, Alair Gomes e os meninos do Rio.

 

Irving Penn e Lisa Fonssagrives
Jean Shrimpton e Catherine Deneuve

 

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