Relatos pessoais de uma fotógrafa, ou a fotobiografia

Ainda em torno do trabalho da artista Sophie Calle que falamos no início no mês passado, gostaria de pensar sobre a imagem pública se misturando à vida pessoal, ou o termo fotobiografia, que significa literalmente um relato visual da vida de alguém. Em seu trabalho, Sophie perpassa esse sentido exato e dá outras interpretações.

 

Sophie Calle é uma artista francesa que trabalha com fotografia, vídeo, performance e texto. De forma bastante conceitual, suas obras partem de suas experiências pessoais para fazer um contraponto entre a nossa vida privada e a vida pública. Ao utilizar momentos da sua vida, sua obra não é uma forma de terapia ou um narcisismo radical de querer aparecer, mas uma fonte de inspiração para falar de questões maiores sobre a arte e sociedade hoje.

 

Meu trabalho não tem nada a ver com a intimidade. Quando uso minha vida, não é minha vida, é uma obra colocada na parede. – Sophie Calle

 

Detective, 1981, Sophie Calle

Um de seus primeiros projetos, Suíte Vénitienne (1979), Sophie segue um homem desconhecido pelas ruas de Paris fotografando e anotando suas ações, como um detetive. Coincidentemente, ela é apresentada a ele em um vernissage e descobre seus planos para viajar à Veneza. Resultado, ela continua o seguindo pela cidade italiana. Em outro trabalho, de 1981, ela pede para mãe contratar um detetive para segui-la, e ela guia o detetive por seus lugares preferidos de Paris, sem ele saber. Aqui ela fotografa e é fotografada, paradoxalmente é objeto e está no comando do aparelho fotográfico.

 

Suite Vénitienne, 1979, Sophie Calle

 

Prenez soin de Vous (Cuide de Você), 2007, acontece depois de receber uma carta de rompimento de seu namorado. Sem saber como responder à carta, ela convida 107 mulheres de diferentes profissões para analisar, interpretar e responder a carta para ela; seja por escrito, dançando, em imagem… O resultado desse trabalho foi exposto na Bienal de Veneza de 2007 e veio ao Brasil em 2009.

 

O termo “fotobiografia” foi utilizado pelos fotógrafos Claude Nori e Gilles Mora em 1983 com o intuito de descrever uma intenção de embaralhar a objetividade fotográfica com a ação proposital de uma pessoa que se mistura à representação: ela é ao mesmo tempo personagem e autor da representação imagética. Como a fotografia arrasta com ela o peso da “realidade”, quando vemos as imagens de Sophie imaginamos uma documentação detalhada de sua vida pessoal. Mas o que ela faz é precisamente o contrário, um jogo com o real.

 

Prenez Soin de vous, 2007, Sophie Calle

 

Esse atentado ao realismo fotográfico, como estamos acostumados, é feito de maneira leve e até jocosa na obra da artista. Ela questiona sutilmente a realidade de quem somos ou o que pensam(os) que somos. Susan Sontag disse que em nossa sociedade hoje, a realidade está cada vez mais parecida ao que nos mostram as imagens, atribuímos às coisas reais qualidades imagéticas. Através da imagem e de pequenos textos, Sophie Calle faz sua vida pessoal parecer fatos, mas a sua fotobiografia se relaciona mais à ficção do que à documentação de seu cotidiano.

 

 

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Vamos falar sobre o fotolivro?

O termo fotolivro – ou livro de fotografia, ou ainda livro de artista – tem sido cada vez mais utilizado no meio da fotografia. Mais do que isso, cursos, prêmios, editoras estão cada vez mais investindo nesse caminho. Recentemente, escutei da fotógrafa Claudia Jaguaribe, que além de fotógrafa também tem a editora Madalena de fotolivros, que a fotografia é a melhor mídia para o livro, pois é uma obra em si. Essa frase me fez querer pensar o formato da fotografia em livro.

 

Diferentemente da pintura, que tem suas imagens reproduzidas nos livros, ou o vídeo ou a performance, a fotografia em formato de livro não é uma reprodução mas o trabalho em si. E, diferentemente da exposição na parede, pode encontrar milhões de alternativas originais de apresentação. O fotolivro é em si uma arte dotada de estrutura própria, narrativa intricada e coerência visual e intelectual.

 

Gerry Badger descreve o fotolivro como “um tipo particular de livro fotográfico, em que as imagens predominam sobre o texto e em que o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico contribui para a construção de uma narrativa visual”. É apenas uma descrição, dentre tantas possíveis. Aqui gostaria de abrir um pouco mais essa definição, e pensar em projetos fotográficos que desde o início foram feitos para serem vistos na forma de livro. Muitos fotógrafos se consagraram ao longo da história da fotografia e vários são os exemplos de fotolivros ícones: The Americans, 1958, de Robert Franck, American Photographs, 1938, de Walker Evans, The Golden Years, 1995, Nan Goldin, Think of England, 2000, de Martin Parr, Genesis, 2013, de Sebastião Salgado, entre tantos e tantos outros.

 

 

A obra é a extensão de seu autor, e o fotolivro é uma de suas melhores traduções.

 

Através da sequencia de imagens – textos, e objetos- uma relação visual é criada entre as fotos; criando metáforas, simbologias, narrativas, e acrescentando mais camadas e profundidade ao ensaio do fotógrafo. O fotolivro não é um punhado de imagens colocadas juntas aleatoriamente, mas, como já descreveu Gerry, um trabalho de vários profissionais em pensar o ensaio dentro de um tema, uma forma, um estilo e uma ideia maior que perpasse um conjunto de imagens.

 

O fotógrafo Ivan Padovani, por exemplo, tem um lindo fotolivro do seu trabalho “Campo Cego”. Querendo mostrar o caos da cidade através das empenas dos prédios de São Paulo, suas imagens são impressas em papel transparente, criando camadas de linhas e formas visuais.

 

Ivan Padovani, Campo Cego, 2015

 

O fotolivro permite duas outras coisas. Primeiro, atingir um público maior, democratizar a obra de arte, e quebrar com a obra numerada, assinada e emoldurada na parede da galeria ou museu. Segundo, de criar um diálogo mais intimo com esse público. Ao folhear o fotolivro, como qualquer livro, somos transportados a um lugar, a uma sociedade, a uma história pessoal. Podemos voltar, reler, parar, ficar e saímos do registro documental da imagem para uma conversa pessoal e criativa.

 

O livro de artista nada mais é que a obra de arte pensada no formato livro/publicação. É mais uma rica oportunidade para fotógrafos e artistas de explorar outras linguagens e conexões.

 

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