Mitologia e fotografia

Na mitologia grega, as musas são as filhas de Zeus e Mnemose (a Memória). Elas seriam as divindades responsáveis por inspirar as atividades artísticas e a ciência. Elas são 9 – Calíope, Clio, Érato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Terpsícore, Talia e Urânia – e vivem em um templo que se chama Museion, que curiosamente deu origem a palavra Museu.

 

Algumas interpretações dos mitos gregos dizem que o dom de Mnemose, a memória, é conduzir o côro das Musas e, confundindo-se com elas, presidir a função artística. A arte, através das Musas, incitaria de delírio divino o artista e esse se transformaria no intérprete de Mnemose, aquela que tudo sabe.

 

Alair Gomes

 

No contexto mítico, lembrar significa resgatar um momento originário e torná-lo eterno. A memória confere imortalidade àquilo que ordinariamente estaria perdido de modo irrecuperável. Traz de novo a presença dos Deuses no mundo e nos coloca em relação com nossos antepassados, nossa história em comum, aquela que nos faz o que somos.

 

O lugar da memória é o lugar da imortalidade, ela liga os tempos e o que de fato é importante, como a fotografia. A arte abriga obras produzidas no passado e deixadas para as gerações, ligando os tempos e ajudando o papel da memória. A fotografia ainda vai além, ligando momentos, rostos, situações do passado ao presente. Diferente do que é difundido, o trabalho das musas é ativo (e não passivo), uma parceria entre a memória e as artes para lembrar o que somos através do tempo.

 

Na fotografia temos inúmeros exemplos de musas e musos que inspiraram lindas imagens, como Irving Penn e Lisa Fonssagrives, Franco Rubartelli e Veruschka, Jean Shrimpton e Catherine Deneuve. Ou ainda, Sally Mann e Larry, Robert Mapplethorpe e Sam Wagstaff, Alair Gomes e os meninos do Rio.

 

Irving Penn e Lisa Fonssagrives
Jean Shrimpton e Catherine Deneuve

 

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Fotografia, memória e documento

Semana passada falamos sobre o ato de lembrar, e a construção de uma história comum através da documentação de uma memória. Gostaria de permanecer nesse tema, e discutir mais o papel da fotografia na preservação de nossa memória.

 

Que a fotografia salve do esquecimento as ruínas decadentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma irá desaparecer e que pedem um lugar no arquivo de nossa memória. – Baudelaire, 1959

 

Eugene Atget, Cour, 41 rue Broca, 1912

 

A fotografia, como já discutido aqui, tem uma forte relação com o documental. Dizem que através da foto, a memória do passado estará aprisionada na imagem, nos possibilitando relembrar para sempre, cada vez que nosso olhar cruzar a imagem em questão.  Mas no fundo, esse memória fotográfica não é tão objetiva assim.

 

Freud fala da memória como essencial ao processo psicanalítico. Resumidamente, a memória para ele se organiza por superposição de camadas, como em um processo de estratificação, onde a nova memória não apaga a outra mas se sobrepõe. Assim, nossas memórias seriam múltiplas, em constante transformação através das novas experiências que vivemos, dos relatos que ouvimos ou imagens que vemos. Nós teríamos uma capacidade ilimitada de receber novas percepções, e como um bloco mágico, histórias presentes se inscrevem por cima de fatos passados.

 

Alfred Eisenstaedt, 1945

 

A fotografia aparece como uma memória passada no tempo presente, um resgate. Porém enquanto documento de uma lembrança passada, ela não é um detalhe objetivo. Muito pelo contrário, ela é um diálogo entre o nosso olhar presente, alterado de lembranças superpostas, e a imagem passada.

 

Diante da imagem, o sujeito não olha apenas para o mundo, mas também olha para si mesmo. O olhar não vai unicamente em uma direção: ele passa pela superfície e, em seguida, atravessa de volta para o sujeito. Ele vai do passado para o presente e vice versa. – Camille Bonnefoi

 

Vulgo, Rosângela Rennó, 1998

 

A FOTOGRAFIA NÃO ATESTA NADA E ATESTA TUDO.

 

A fotografia enquanto documento de um passado não é verdade única. Como já vimos antes, o olhar, do fotógrafo e do observador, nunca é inocente!

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