Um sonho irreal de realidade

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Termina esse fim de semana a exposição do fotógrafo Alex Majoli no Le BAL em Paris. Alex é italiano, fotojornalista da Magnum desde 2001. Entre seus trabalhos, ele cobriu os talibãs no Afeganistão, a invasão do Irak, a primavera árabe, parte do processo político dos últimos anos no Brasil, entre outros assuntos. Sua exposição no Le Bal é de sua série “Scene (cena)” iniciada em 2006.

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Grandes formatos, em preto e branco, se espalham pelas paredes das salas, reunidos geograficamente pelos países fotografados: Brasil, Egito, China, Congo e Índia. A peculiaridade é que Alex usa luz artificial durante o dia para suas imagens parecerem que acontecem de noite. São fotos posadas de eventos de grande importância foto jornalística, que o fotógrafo, ou diretor, teatraliza na noite americana. Personagens que nos são apresentados ao mesmo tempo reais e fictícios.

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@alex majoli, Brasil, 2014

Já falamos por aqui de fotografia e teatro. A arte do teatro pode ser exemplificada como uma interpretação de uma história para uma plateia, com capacidade de iludir e criar simulacros. O espectador sabe que está vendo algo falso mas é envolvido e se deixa enganar. Alex Majoli, em suas imagens, assume o simulacro em duas oposições. De um lado, ele simula a noite no dia, e o real no posado, e por outro lado, ele reforça a idéia de que no mar de imagens que temos acesso hoje, tudo vira um grande teatro. Naufragados nestas ondas enormes de imagens, não vemos mais nada de real.

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“Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la.” – Bertolt Brecht

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@alex majoli, congo, 2013

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Para finalizar, gostaria de problematizar o olhar nas imagens de Alex Majoli. No teatro somos nós que observamos a cena: o público sentado na platéia. Nas fotografias de Alex, olhamos os personagens apresentados, como em um teatro, mas esses personagens também existem na realidade. Durante a noite e no meio das zonas de conflito, as máscaras caem. Com isso, todos nós perdemos nossas referências: tanto a platéia quanto os personagens em cena. Nessa transgressão desenvolvida pelo fotógrafo, existe a possibilidade da inversão de papéis. Não é mais o público que observa, mas é observado pelos personagens presentes.

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Sob a máscara da noite, dentro da esfera da inquietude, Alex nos coloca fora de campo para transgredirmos as fronteira do olhar.

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@alex majoli, china, 2017

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@alex majoli, índia, 2015
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Desconstruindo os cartões postais

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A fotógrafa francesa Elsa Leydier depois de se formar na escola de fotografia de Arles, e viajar pelo mundo, resolveu se mudar para o Brasil. E é através da fotografia, que ela vive esse deslocamento territorial e identitário. Com um olhar agudo, ela discute em suas imagens toda complexidade brasileira que não é mostrada no exterior. Sua preocupação é fugir do clichê e das imagens dos cartões postais.

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Ela está longe de ser a turista tradicional!

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A jovem artista se interessa justamente pelo que não é dito; pelo o que está na margem, fora dos limites e longe dos esteriótipos. Seu trabalho mistura a fotografia com diferentes mídias, como jornais e colagens. E ela nem sempre está atrás da câmera. Em sua série “Esgotados” de 2014, por exemplo, ela utilisa imagens de cartões postais de índios em uma colagem com selos comemorativos da Copa do Mundo no Brasil. Uma crítica à ganância dos jogos de futebol e a pouca importância dada à cultura tradicional indígena. Enquanto os selos arrecadaram milhões de reais, o Museu do Índio, perto do Maracanã, foi destruído para dar lugar a restaurantes e lojas para os turistas da Copa.

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@elsa leydier, esgotados, 2014

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@elsa leydier, #elenão, 2018

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Uma de suas últimas séries fotográficas é calcada na eleição de Jair Bolsonaro: “#elenão”. Aqui ela apresenta imagens associadas à palavra “Brasil” encontradas na internet, as relaciona com o discurso de ódio profanada pelo nosso atual presidente e as altera por um processo de glitching. Resultado: belas imagens desconstruídas. Os cartões postais coloridos, alegres e purpurinados, são modificados através de um discurso anti-democrático. O que temos são fotografias simbólicas de um país em crise.

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Para os que estarão em Paris, até dia 20 de abril, a artista apresenta um pouco do seu trabalho na galeria Intervalle com a exposição “Transatlántica”.

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@elas leydier, braços verdes e olhos cheios de asas
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Intimidade

Em fevereiro falamos muito da questão de privacidade dos retratados e da importância do posicionamento do fotógrafo diante de suas imagens. Passando para uma esfera ainda mais pessoal, fiquei pensando nas imagens feitas da/na intimidade. Imagens que também podem ser agressivas com seus retratados quando ultrapassam um certo limite estabelecido. Imagens que tem a capacidade de violar.

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Apresento aqui alguns fotógrafos (mais e menos conhecidos) que, acredito eu, retrataram a intimidade de maneira honesta, para quem vê e para quem é visto. Seja a intimidade deles, ou de outros, são imagens que decidem o que mostrar com respeito.

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Rodrigo Pinheiro  (série Tornaras, 2016)

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Paul Schneggenburger (série “The sleep of the beloved” – O sono do amado, 2012)


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Francesca Woodman (auto-retratos, 1979/80)

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Sue Barnes (auto retrato, 1976)

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Lucas Gibson (Sob o nervo da noite, 2015 até hoje)

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Nan Goldin

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Privacidade e relações de força na fotografia

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Semana passada falamos aqui de duas facetas da fotografia: a sua importância em revelar e evidenciar mas sem ser a qualquer custo. Fotografar requer saber o que mostrar, com responsabilidade, diálogo e posicionamento.

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Escolhi algumas imagens no post anterior de fotógrafos que fazem pontes e se posicionam: que condenam quando têm que condenar. E que dialogam com seus retratados, criando aberturas. Foram imagens do mineiro Eustáquio Neves que trabalha sobre a identidade e luta da comunidade afro-descendente no Brasil e no mundo. E imagens do projeto de diálogo e inlcusão do jovem Pedro Kuperman com os índios Ashaninka.

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Hoje resolvi pensar em mais fotógrafos que delicadamente revelam uma questão. Sem agressão ao sujeito, ao assunto ou à privacidade. As imagens revelam o que pode ser revelado com ética e sobretudo com um verdadeiro olhar ao outro e um posicionamento diante dos temas discutidos.

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Vamos conferir!

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Richard Mosse: fotojornalista irlandês que ganhou muitos prêmios com imagens de guerra. Seu olhar se posiciona, tentando criar uma nova perspectiva dos conflitos que clicou.

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Richard Mosse, Grid, 2017

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Omar Victor Diop: fotógrafo de Dakar, Omar segue a tradição dos estúdios de fotografia mas com um olhar apontado para a falta de oportunidade da comunidade negra e sua representação caricaturada.

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Omar Diop, (re) mixing Hollywood, 2013

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Omar Diop, (re) mixing Hollywood, 2013

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Paul Mpagi Sepuya: retratista de amigos e pessoas próximas, Paul trabalha da cultura visual homoerótica dentro da “proteção” e privacidade do estúdio. Suas fotografias altamente trabalhadas, e fragmentadas, são uma constante negociação entre o artista, o sujeito e o espectador.

Paul Mpagi Sepuya,Study for a Self Portrait 2015,

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David Uzochukwu: outro retratista, europeu, que trabalha o corpo humano e nossos limites entre força e vulnerabilidade.

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A fotografia como forma de submissão

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A câmera fotográfica pode ser um equipamento extremamente intrusivo, incomodando a intimidade das pessoas e mostrando mais do que deveria. A invenção da fotografia veio com o deslumbramento da “revelação”. Toda a tecnologia fotográfica, e depois o que isso acarretou – cinema, televisão… – ocasionou um frenesi diante das possibilidades de se expandir as fronteiras do visível. Através dos artefatos tecnológicos – processos de revelação mais rápidos e de melhor qualidade, máquinas menores e mais agis – estendemos os limites, desvelamos o mundo. Como a descoberta do movimento, por exemplo, com o famoso fotógrafo Muybridge, em 1878. Antes dele não tínhamos a menor consciência dos movimentos dos animais: a fotografia trouxe a luz.

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Assim como detalhes da física e da biologia, trouxemos à luz povos, culturas, situações antes encobertas. Mas trazer tudo à luz pode ser agressivo. “Tirar” uma foto já denota uma violência. Como afirmava Susan Sontag em 1977, em seu livro “Sobre Fotografia”:

“Fotografar pessoas é violá-las (…); transforma-las em objetos que podem ser simbolicamente possuídos. (…)” – Susan Sontag

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Pedro Kuperman, Ashaninka, 2016

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A fotógrafa Teju Cole escreveu aqui sobre a violência da fotografia em relação a soberania de um povo sobre outro. Como a mídia fotográfica ilustrou a dominação do colonizador sobre seus subjugados, revelando tudo, até o que não podia ser mostrado: mulheres sem véu, reis sem coroas e máscaras… Os subjugados perdem a privacidade e a intimidade diante das câmeras fotográficas colonizadoras. É violento.

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Hoje esse processo ainda continua. Pois no jogo de poder ainda existe o dominante que se utilisa da estética do sofrimento para difundir suas imagens. Não é o sujeito fotografado que importa mas o consumo do outro. Com as novas tecnologias, e a rapidez de difusão, a violência é ainda mais cruel. Refugiados, sem proteção, são mostrados em seus momentos mais sofridos, mais inumanos. E as fotos exibidas em grandes exposições com aberturas regadas a champagne.

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Eustáquio Neves, Encomendador de Almas, 2006

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Eustáquio Neves, Valongo: Cartas ao mar, 2015/16

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Mostrar e evidenciar o que se passa ao redor do mundo é um papel importante da fotografia. Precisamos ver outras realidades, outras histórias, outras facetas diferentes do nosso obtuso olhar. Precisamos explorar e descobrir, pois dessa maneira criamos empatia. Mas sem colecionar vidas e através delas prêmios e troféus. Não basta mostrar, tem que se posicionar, assim como fazem as imagens desse texto.

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“Entre os direitos humanos está o direito de permanecer invisível .” – Teju Cole

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