Sophie Calle, entre caça e caçador

A artista e fotógrafa francesa Sophie Calle está com uma estupenda exposição no museu da Caça em Paris. Em uma antiga casa de 3 andares, ela cria um jogo de rastros e pistas, onde vamos descobrindo as pegadas da artista contemporânea no meio do acervo de animais empalhados. Ela é a caça e somos os caçadores? Talvez. A experiência é bastante rica e sem notarmos, esse jogo nos aproxima mais da fotografia e suas fronteiras.

 

A exposição, com alguns trabalhos antigos da carreira de Sophie, é feita como homenagem ao seu pai que morreu. Morte, capturar a presença e a memória, perseguir histórias e imagens, apreender, aprisionar, fantasmas são alguns termos que rastreamos ao longo da exposição: através das obras da artista, da coleção do museu e das questões em torno da fotografia.

 

 

O cinema é a vida, a fotografia é a morte. – Susan Sontag

 

O trabalho de Sophie Calle tem uma estreita relação com sua vida pessoal. Ela dormiu no topo da Torre Eiffel (durante a primeira Nuit Blanche em 2002), passou a noite em uma cabine de pedágio na rodovia perguntando aos motoristas onde podiam levá-la, foi stripper, contratou um detetive para segui-la por vários dias, seguiu um homem aleatoriamente, pediu para estranhos dormirem com ela, e transformou tudo isso em obras de arte. Anos antes trabalhou com a morte da sua mãe: leu o diário da sua mãe em público, e filmou a morte de sua mãe, seu último suspiro, com seu acordo. Agora chegou a vez de lidar com a morte do pai. Ela caça esse novo rastro perdido.

 

O início da exposição trás a fotografia de um urso branco, que fica na entrada do museu, encoberto por um grande lençol branco, como um fantasma. Fácil de relacionar a morte com a fotografia; depois que a pessoa se foi, e fica apenas sua lembrança e suas fotografias – seus fantasmas – será que nos lembramos mesmo de como era a pessoa? De sua alma? A fotografia interpreta um momento, mas não mantém a pessoa amada conosco, a vida continua. A fotografia torna-se um lembrete constante de que o tempo passou e não voltará, que a pessoa se foi e não voltará.

 

A exposição continua com a presença da morte. Em um quarto com os ares de mausoléu, nossos olhos cruzam o próprio túmulo de seu pai recentemente falecido. Vemos também o que seria a última fotografia de seu pai, na FIAC, e um texto que explica o porque dessa foto ter sido tirada: “porque ele estava sorrindo. Porque na pintura atrás estava escrito silêncio…”.  É uma imagem singela, de nenhum significado para o público, fugaz, com alguns detalhes importantes do pai para a filha, mas tão aquém do que ele era, e tão pouco diante da ausência desse pai.

 

Em Mes morts (2017) Sophie transporta as pessoas que ela ama, mortos ou vivos, simbolicamente em animais empalhados, os personificando dentro dessas peles de animais. Como a fotografia: uma pele de uma imagem empalhada. Mes Morts é acompanhado por Deuil pour deuil (2017), uma instalação em que Serena Carone representa sua amiga Sophie em tamanho natural, como uma efígie mortuária, e todos os seus amados empalhados ao redor. 

 

 

Várias são as ideias que surgem quando pensamos em fotografia e morte. Mas qual seria a memória fotográfica? Não tenho resposta certa, mas diria que passa por uma prática humana natural, a necessidade de manter a memória do ente querido viva. Na língua latina “imago” significava o molde em cera do rosto dos mortos que era colocado em nichos em casa. Guardamos nossos porta retratos ou transformamos em instalações.

 

 

 

*a exposição Sophie Calle e sua convidada Serena Carone fica em cartaz até fevereiro 2018.

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Fotografia e o Sublime

Immanuel Kant foi um filósofo alemão do século XVIII, considerado um dos pais do pensamento moderno. Em resumo, Kant trabalhou pensando entre o empirismo e o racionalismo. Discutiu metafísica, política, e também a sensibilidade da homem, ou a estética. Dentro disso, ele discorre muito sobre o belo e o sublime. Segundo ele, a experiência do belo é uma experiência de conformação de mundo, que lida com a forma dentro dos seus limites. Diferentemente do belo, a experiência do sublime é o momento onde a imaginação, atordoada por um excesso de grandeza ou poder, falha em “compreender” e exalta.

 

Kant, em toda sua análise, não entra muito no mérito do sublime nas artes, muito menos na arte fotográfica. Nada impede que tratemos agora desta questão, mais precisamente do sublime na fotografia.

 

Thomas Ruff, 1989

 

O que poderia aproximar a fotografia da experiência do sublime? A sua relação com o referente.

 

A fotografia está ligada ao real, e com isso tem uma reflexão diferente de outras formas de arte. A pintura pode imaginar o referente, pinto uma casa sem tê-la visto. A fotografia não apenas relembra o passado, ela trás uma suposta comprovação do passado, atesta que o que vejo agora na foto, de fato existiu. A fotografia coincide com seu o status de documentação, certamente mais que qualquer outra arte, e com isso nos coloca numa presença imediata do mundo, de ordem quase metafísica.

 

Cada foto vem nos abalar, nos lembrar da nossa própria existência e assim, da nossa própria morte, fazendo com que tudo mais se torne pequeno, sem sentido e sem importância. A fotografia nos cria um abalo interno, uma angustia, um prazer e um desprazer diante da foto, uma experiência do sublime. Excedemos nossa capacidade de esquematização, damos asa a nossa imaginação e quebramos as amarras. A fotografia nos provoca a experiência de algo de outra ordem, ou seja, passamos a ser capazes de conceber algo maior, ou mais poderoso: algo sublime.

 

The Tetons and the Snake River, Wyoming, 1942, Ansel Adams

 

*mais considerações sobre a fotografia e o sublime aqui.

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Óleo, fotografia e artes plásticas

O artista norueguês Per Barclay trabalha experimentando com fotografia e instalações. Suas instalações são pensadas como infinitas possibilidades imagéticas. Desde 1989, ele trabalha em torno de sua obra denominada “espaços de óleo” que consiste em surfaces planas de um líquido espalhado no chão de ambientes fechados. Na maioria das vezes o líquido utilizado é óleo preto, mas ele também já usou vinho, leite, sangue e água. A instalação é pensada em parceria com a fotografia, como um meio de confrontar o espaço através de outros pontos de vista.

 

Per Barclay, Hospital Matarazzo, SP, 2014

 

Barclay gosta de brincar com o espaço e o tempo. Suas instalações, e as fotografias decorrentes, não possuem parâmetros: seus pontos de vistas feitos através do reflexo do líquido transformam o lugar. O ambiente se inverte, o solo preto infinito absorve vertiginosamente o espaço ao seu redor e o espectador acaba sendo sugado. A instalação se funde aos contornos arquitetônicos e naturais, transformando-o e ao mesmo tempo sendo transformada. E é através da imagem fotográfica que muitas dessas novas relações são reveladas.

 

Per Barclay, Velha casa de barco, Noruega

 

O tempo é irreal e o espaço atemporal.

 

Seu trabalho lida com tensões internas derivadas dos contrastes que ele põe em jogo: reflexo e real, arquitetura e vazio, espaço fechado concreto e superfície líquida, negativo e positivo, ficção e realidade, equilíbrio e descontrole, abismo e planície. E os resultados mexem com nossas referências. Entramos através do espelho, e como Alice atravessamos ao outro lado da realidade, mais misteriosa e transformadora.

 

Per Barclay, CCC Tours, 2017
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Apropriação e polêmica no universo fotográfico

A incrível história do falso fotógrafo da ONU que estampou todas as redes de notícias esses últimos dias dá pano para muita discussão sobre fotografia e mercado. Eduardo Martins seria um jovem fotógrafo paulista que depois de uma infância difícil se dedicava a fotografia de guerra. Usando as mídias sociais contra elas mesmas, o tal fotógrafo brasileiro foi se criando uma rede de fãs, aumentando sua carreira virtual, ganhando “likes” e comentários de pessoas supostamente importantes virtualmente, chegando a mais de 120 mil seguidores no instagram. Oferecendo suas imagens de graça, divulgou seu “trabalho” fotográfico em sites de notícia como o The Wall Street Journal, a Vice e a BBC Brasil. O problema é que esse trabalho (e sua identidade) era roubado de outros fotógrafos (e modificado para não ser rastreado) e que ninguém até agora reconheceu Eduardo nas zonas de conflito que ele diz ter estado. O personagem Eduardo Martins conseguiu se manter real e ativo por dois anos!

 

Seria Eduardo Martins uma obra de arte em si? Um projeto anti-sistema, que escancara suas fragilidades? Um personagem para questionar as loucuras da divulgação e distribuição precária, pouco exigente e banalizada das fotos jornalísticas? Uma ironia para falarmos de apropriação, plágio e direito autoral na fotografia? Como disse, são muitos os preâmbulos que Eduardo Martins nos abre, por onde começar…

 

“Art is what you can get away with. (Arte é tudo aquilo que você pode se safar)” – Andy Warhol

 

Andy Warhol, Díptico Marilyn, 1962

 

Nas minhas reflexões sempre me interessei sobre apropriação na arte, e Edu Martins me fez pensar em alguns artistas como Richard Prince e Andy Warhol. Richard Prince trabalha justamente com a apropriação de imagens de jornal, publicidade, livros, e agora instagram. Seu trabalho consiste em se apropriar de imagens de outros fotógrafos e dar novos significados. Ele muda um pouco a imagem e a coloca em outro contesto evidenciando questões que perpassam a história da arte e que estão cada vez mais gritantes no mundo contemporâneo virtual.  Prince refotografa, recorta, aumenta, diminui, acrescenta comentários, escaneia…

 

O artista e pintor americano começou seu questionamento sobre apropriação nos anos 70 ao refotografar uma imagem de Sam Bell de um cowboy na propaganda de cigarros Malboro. A reprodução é feita de maneira que o ícone publicitário aparece em tamanho maior ao da campanha original. Nos moldes do nosso falsário Eduardo Martins, Prince usa o próprio sistema, ou seja, a própria linguagem da comunicação de massa como ferramenta contra ela mesma. Ele lida com o crescente interesse nas questões de comunicação e produção em massa, de consumação, de banalização da fotografia, de (re)significação da imagem dependendo de seu meio de apresentação… Porém, diferente de Eduardo Martins, Prince não finge ser o que não é, mesmo que muitas vezes extrapole.

 

Richard Prince, Cowboy, 1975

 

Richard Prince, exposição “Novos Retratos”, Gagosian, NY, 2014

 

Prince não fugiu das redes sociais depois que foi pego em flagrante, e defende seu “roubo” de imagens com veemência. Para ele, a enorme disponibilidade de imagens em circulação no mundo cria uma plataforma cujo resultado criativo se torna patrimônio comum. Na era digital, quando cada momento é capturado em imagem e compartilhado nas redes sociais numa escala global, as experiências são imediatamente visualizadas e consumidas por todos. A percepção do mundo – identidade, gênero, etnia, desejo e sexualidade – é moldada pelas imagens.

 

Mas ser fotógrafo nesse mundo não é fácil. A concorrência com os bancos de imagem é enorme, não existe poderosas agências para defender o interesse dos fotógrafos, suas imagens são compradas por muito pouco quando não são compartilhadas de graça, sem nem uma menção ao nome do artista. Prince já respondeu a alguns processos ao longo de sua carreira, sobretudo porque suas obras vendem bem no mercado de arte. Mas ele ganhou todas elas (mesmo que muitas vezes tenha feito acordos no meio do processo). Afinal, “não seria a vida uma série de imagens que mudam a medida que se repetem”? – Andy Warhol.

 

 

 

 

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Hollywood: Criando mitos

No início os filmes nem sequer citavam os nomes dos atores, o público reconhecia os rostos familiares como sendo a Biograph ou a Vitagraph Girl (produtoras de cinema da época). Em 1911, a revista Motion Picture World pediu para os produtores de Hollywood colocarem na tela o nome de seus principais intérpretes. Os tipos iam se fixando no imaginário do público – certos atores eram vilões, algumas atrizes eram vamps. Alguns executivos dos estúdios eram particularmente habilidosos na manipulação do Star System, L. B. Mayer lançou as duplas Greta Garbo – John Gilbert, Mickey Rooney – Judy Garland, Clark Gable – Jean Harlow, Spencer Tracy – Katherine Hepburn.

 

Foi uma das grandes jogadas da indústria cinematográfica. Por meio da imagem das revistas especializadas, colunas de fofocas em jornais, escândalos, inventados ou não, criavam-se estrelas da noite para o dia. O público passa a se identificar com seus astros prediletos, e a partir daí consome tudo aquilo que tem alguma ligação com a estrela em questão.

 

A estrela era laboriosamente construída, para formar a imagem e produto ideal, aquele que todos querem consumir. Com isso, muitos atores que na época foram considerados verdadeiros galãs, que faziam as filas das estréias lotarem, muitos casais considerados perfeitos, que faziam as mocinhas torcerem para o difícil final feliz, e muitas vedetes consideradas virginais e ingênuas não passaram de imagens inventadas, criadas para satisfazer os anseios do público.

 

Cecil Beaton, Marilyn Imortal, 1956.

 

E o star system continua atualíssimo, em Hollywood, na Globo ou no SBT. A “fotografia de fofoca” continua sempre em alta.

 

Mas, o que nos leva a simpatizar com galãs falsos e histórias mal contadas? Todo relacionamento entre nós e o ator, inclusive a opinião que temos acerca de seu trabalho, tem que ser transmitido afetivamente, através de uma conexão inconsciente, um vínculo tácito.

 
 

A fotografia é a prova, uma das mais firmes, da existência de um fato.

 

 

Cecil Beaton, Rudolf Nureyev, 1960

 

A imagem tem uma forma intrínseca e natural de manipular, ela tem na sua essência o poder da verdade, afirmando uma realidade que passa a ser a verdadeira, e portanto hegemônica. Quando uma foto nos toma por completo, os fatos que sabemos falsos podem nos levar a uma realidade superior, mais forte, mais penetrante, e decisivamente mais real do que a própria realidade. Somos guiados por artifícios e transportados na ilusão. E gostamos.

 

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