Esquecidas e transformadas

  

Fotografias esquecidas no lixo, nos antigos álbuns de família, nas gavetas empoeiradas, nos sebos ou feiras de antiguidade… ou até mesmo no extenso lixo da internet. São fotografias abandonadas, rostos que ninguém mais conhece, dedicatórias que ninguém mais lê e memórias que ninguém conta. Como trabalhar essas imagens “desaparecidas” que habitam o nosso cotidiano?

  

Pensando essas questões, a Voz’Galerie chamou vinte artistas para trabalharem com imagens anônimas na exposição “Transtorno de identidade”*. A curadora Isabelle de Maison Rouge quis dialogar com as novas possibilidades de existência dessas imagens. Como e de que maneira elas poderiam viajar no tempo e na história e entrarem na nossa ficção atual.

  

Iris legendre, Série Contagion pins sur photographie, 2012-2018

  

Primeiramente, imagens feitas e esquecidas perdem seu significado original e seu contexto anterior. Obrigatoriamente o artista usa o material inicial para alimentar seu trabalho pessoal mas opera dentro de uma descontextualização de seu objetivo anteriormente planejado. Novas leituras e novas interpretações são propostas, criando assim um novo destino para essas imagens. Diria até mais, muitos artistas criam novas memórias e novos personagens a partir dessas imagens. Como o coletivo Action Anonymes SA que criou retratos de famílias inventadas a partir de antigas fotografias escolhidas e montadas ao acaso. 

  

“Alguém disse que morremos duas vezes. Nós morremos quando morremos e morremos uma segunda vez quando encontram sua foto e ninguém sabe mais quem é.” – Christian Boltanski

  

Alguns artistas trabalham essas imagens como relíquias, guardando o tesouro de um passado perdido. Outros usam e queimam o que não usaram, como parte de um ritual. Ou ainda, como artista David Munoz, as imagens são pessoais, parte de um resgate de memória, um diálogo com uma infância perdida.

  

David Munoz

  

De uma certa maneira, numa época onde a imagem ficou para além do banal – impalpável e fugaz – essa exposição coloca em questão a nossa relação com as nossas futuras memórias. Assim como as nossas origens. Entre un story e um snapchats , qual a nossa relação com a imagem, a memória e a identidade? 

  

*A exposição coletiva “Trouble d’indetité” fica em cartaz até dia 10.01.2019 – Actions Anonymes Sa, Corine Borgnet, Gaëlle Cueff, Léo Dorfner, Isabelle Ferreira, Coco Fronsac, Agnès Geoffray, Sylvain Granjon, Nicolas Henry, Sandra Krasker, Iris Legendre, Gabriel Léger, Sandra Lorenzi, Popy-Loly De Monteysson, David Munoz, Hubert Renard, Karine Rougier et Valérie Pelet, Erwan Venn et Julio Villani. 

  

Actions Anonymes SA, família “Os abstratos” pai, 2018
Continue Reading

Apropriação e polêmica no universo fotográfico

A incrível história do falso fotógrafo da ONU que estampou todas as redes de notícias esses últimos dias dá pano para muita discussão sobre fotografia e mercado. Eduardo Martins seria um jovem fotógrafo paulista que depois de uma infância difícil se dedicava a fotografia de guerra. Usando as mídias sociais contra elas mesmas, o tal fotógrafo brasileiro foi se criando uma rede de fãs, aumentando sua carreira virtual, ganhando “likes” e comentários de pessoas supostamente importantes virtualmente, chegando a mais de 120 mil seguidores no instagram. Oferecendo suas imagens de graça, divulgou seu “trabalho” fotográfico em sites de notícia como o The Wall Street Journal, a Vice e a BBC Brasil. O problema é que esse trabalho (e sua identidade) era roubado de outros fotógrafos (e modificado para não ser rastreado) e que ninguém até agora reconheceu Eduardo nas zonas de conflito que ele diz ter estado. O personagem Eduardo Martins conseguiu se manter real e ativo por dois anos!

 

Seria Eduardo Martins uma obra de arte em si? Um projeto anti-sistema, que escancara suas fragilidades? Um personagem para questionar as loucuras da divulgação e distribuição precária, pouco exigente e banalizada das fotos jornalísticas? Uma ironia para falarmos de apropriação, plágio e direito autoral na fotografia? Como disse, são muitos os preâmbulos que Eduardo Martins nos abre, por onde começar…

 

“Art is what you can get away with. (Arte é tudo aquilo que você pode se safar)” – Andy Warhol

 

Andy Warhol, Díptico Marilyn, 1962

 

Nas minhas reflexões sempre me interessei sobre apropriação na arte, e Edu Martins me fez pensar em alguns artistas como Richard Prince e Andy Warhol. Richard Prince trabalha justamente com a apropriação de imagens de jornal, publicidade, livros, e agora instagram. Seu trabalho consiste em se apropriar de imagens de outros fotógrafos e dar novos significados. Ele muda um pouco a imagem e a coloca em outro contesto evidenciando questões que perpassam a história da arte e que estão cada vez mais gritantes no mundo contemporâneo virtual.  Prince refotografa, recorta, aumenta, diminui, acrescenta comentários, escaneia…

 

O artista e pintor americano começou seu questionamento sobre apropriação nos anos 70 ao refotografar uma imagem de Sam Bell de um cowboy na propaganda de cigarros Malboro. A reprodução é feita de maneira que o ícone publicitário aparece em tamanho maior ao da campanha original. Nos moldes do nosso falsário Eduardo Martins, Prince usa o próprio sistema, ou seja, a própria linguagem da comunicação de massa como ferramenta contra ela mesma. Ele lida com o crescente interesse nas questões de comunicação e produção em massa, de consumação, de banalização da fotografia, de (re)significação da imagem dependendo de seu meio de apresentação… Porém, diferente de Eduardo Martins, Prince não finge ser o que não é, mesmo que muitas vezes extrapole.

 

Richard Prince, Cowboy, 1975

 

Richard Prince, exposição “Novos Retratos”, Gagosian, NY, 2014

 

Prince não fugiu das redes sociais depois que foi pego em flagrante, e defende seu “roubo” de imagens com veemência. Para ele, a enorme disponibilidade de imagens em circulação no mundo cria uma plataforma cujo resultado criativo se torna patrimônio comum. Na era digital, quando cada momento é capturado em imagem e compartilhado nas redes sociais numa escala global, as experiências são imediatamente visualizadas e consumidas por todos. A percepção do mundo – identidade, gênero, etnia, desejo e sexualidade – é moldada pelas imagens.

 

Mas ser fotógrafo nesse mundo não é fácil. A concorrência com os bancos de imagem é enorme, não existe poderosas agências para defender o interesse dos fotógrafos, suas imagens são compradas por muito pouco quando não são compartilhadas de graça, sem nem uma menção ao nome do artista. Prince já respondeu a alguns processos ao longo de sua carreira, sobretudo porque suas obras vendem bem no mercado de arte. Mas ele ganhou todas elas (mesmo que muitas vezes tenha feito acordos no meio do processo). Afinal, “não seria a vida uma série de imagens que mudam a medida que se repetem”? – Andy Warhol.

 

 

 

 

Continue Reading

Novos caminhos para antigas fotografias

Sempre que vejo fotografias antigas em feiras, álbuns velhos de família que em vez de estarem na prateleira da casa da avó estão em algum brechó ou sebo, experimento uma sensação de curiosidade e pudor. Me sinto invadindo outras vidas, outras sensações que vão muito além da diferença de espaço e tempo. E viajo ao imaginar quem seria a pessoa posando, como se chama o casal na praia, o que viraram aquelas crianças que hoje nem devem mais existir.

 

OLHAR PARA UMA FOTO ANTIGA TRAZ UMA CERTA NOSTALGIA.

 

Muito artistas, de diferentes maneiras, se reapropriam de fotografias antigas para contar novas histórias e levantar novas questões. Como o projeto “Fotos dos outros”, desenvolvido há alguns anos por Fabiano Lemos.

http://fotosdosoutros.tumblr.com

 

Munido de “pedaços” de histórias – cadernetas, livros, lembretes, diários, catálogos e fotografias – o artista por trás desse projeto procura traçar novos rumos para imagens antigas. Como o próprio autor fala em seu tumblr, o projeto levanta questões como “os limites entre amadorismo e arte, o caráter anônimo das imagens”…

 

fotodosoutros

 

Eu gostaria de pensar esse projeto em diálogo com a fotografia. Suas intervenções de fotos garimpadas, texto e objetos de época – como figurinhas – intercalam modernidade e anacronismo, articulam um passado e um porvir. Fabiano quebra com o tempo embalsamado da imagem fotográfica: antiga e carregada de história. Em seus álbuns, ele manipula fotografias causando uma desconstrução temporal em que o passado é reinventado e reinserido no presente com uma narrativa para o futuro. Seus textos adicionam um movimento, recriando histórias curiosas para as fotografias passadas, tirando-as do isolamento de um evento esquecido no espaço e tempo e trazendo-as para o momento atual de criação.

 

“Fotos dos outros” subverte a prática fotográfica e coloca em questão a realidade. Sai da estreita relação com o visual mergulhando o espectador numa nova realidade , onde ele mesmo poderá recriar aquelas imagens. E matar a curiosidade na invenção das histórias.

 

Os personagens e cenas mortas ganham vida nas obras do projeto e as imagens ressurgem em um movimento de ressureição. E Fabiano vai além da fotografia. Ele sai do momento inicial do clique, onde tínhamos fotógrafo, aparelho e objeto fotografado, e articula uma multiplicidade de outros atores, transbordando para além do tempo, da narração e da representação.

 

É um jogo lúdico, irônico e engraçado que discute o ato fotográfico, a questão de autoria, memória, tempo e representação.

Continue Reading