A fotografia e algumas representações de mães

Essa semana começou com o dia das mães. Em homenagem, gostaria de falar de dois fotógrafos brasileiros que registraram mães e ganharam o prêmio de fotografia da Aliança Francesa do ano de 2017, do qual fiz parte do júri.

 

Gustavo Minas é mais conhecido como fotógrafo de rua. Tem um belo ensaio sobre sua cidade natal de Cássia, em Minas, além de outros, conhecidos, como um sobre a rodoviária de Brasília ou outro sobre Havana. Talvez por ter esse olhar mais urbano, gráfico e atento aos detalhes que aparecem (e desaparecem) rapidamente na cidade, o ensaio de Gustavo, “O Parto”, sobre o nascimento de sua primeira filha, seja tão original. Sendo o pai, Gustavo é parte integrante de seu próprio tema, porém ele consegue mostrar beleza e amor sem cair no clichê das imagens tradicionais de parto. Sua iluminação natural é suave, com reflexos que aumentam as nuanças e valorizam o tema com mais naturalidade.

 

A fotografia de rua é um campo solitário, de observação e paciência. Visto que o parto de sua filha Violeta durou quase 20 horas, e foi em casa, Gustavo achou através da fotografia um lugar para viver esse momento tão feminino e o seu papel de pai, que na hora do parto acaba sendo secundário e um tanto solitário. A camera o permitiu ultrapassar a ansiedade da espera e se fazer presente.

 

“A fotografia é indispensável, como uma forma de meditação”. – Gustavo Minas

 

Gustavo Minas, O Parto

 

Gustavo Minas, O Parto

 

Gustavo Minas, O Parto

 

Ana Sabiá é uma fotógrafa do sul do Brasil, ganhadora do segundo lugar do prêmio Web Photo 2017 com a série sobre mães posando com seus filhos, “Madonnas Contemporâneas”. Estudante de doutorado, suas imagens trabalham lado a lado à uma reflexão filosófica sobre a maternidade e seus símbolos. Independente do contexto intelectual das imagens, e para além dele, Ana representa suas mães e filhos em ambientes familiares, emoldurados com um varal de roupas, e banhados com uma luz suave e complacente. Suas madonas são mulheres atuais, com roupas do dia -a -dia, sem grandes produções, que de uma certa maneira nos remetem aos quadros antigos que retratavam a Madona bíblica. Mas, nós sabemos que, desde “Like a Virgin”, as madonas não são mais virgens, mas mulheres reais, numa luta diária de descobrimento. Meu adendo a esta série é a falta de diversidade. Feita em 2012/13, ela tinha tudo para se expandir para além do universo familiar da artista e mostrar outras madonas do sul ao norte do Brasil.

 

A Madonna – como símbolo artístico de mãe perfeita e amor incondicional – é justificada como uma impossibilidade concreta na vivência cotidiana. – Ana Sabiá

 

Ana Sabiá, Madonnas Contemporâneas, 2012-13

 

Ana Sabiá, Madonnas Contemporâneas, 2012-13
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Era tudo uma grande brincadeira com a realidade

A fotografia sempre discutiu os limites entre realidade vs ficção / verdade vs mentira. Com a sua proximidade ao objeto fotografado, a fotografia carregou durante muito tempo, e carrega ainda hoje, a fama de ser a mídia que registra o real.

 

Nos anos 70 e 80, muitos artistas problematizaram a representação realística da fotografia. A fotógrafa Cindy Sherman, por exemplo, nunca se contentou, em todo seu trabalho fotográfico, com a experiência direta da realidade mas com uma projeção dessa realidade. Sua obra está inserida em um mundo feito de imagens que remetem a outras imagens. Ela não quer representar o real, mas discuti-lo e reinventa-lo. Diferente da fotógrafa Diane Arbus, por exemplo, que trabalhava a foto com um viés muito mais analista e arquivista, como uma ponte entre o sujeito e o objeto.

 

Joan, Fontcuberta, Miracle of Cryofloration, 2002

 

Hoje, o debate entre real e falso está ultrapassado, nossa contemporaneidade discute o “mentir bem” e o “mentir mal”. Joan Fontcuberta é um fotógrafo, curador, escritor, teórico e ativista espanhol que trabalha os conceitos da imagem, numa tentativa menos de descrever o mundo e mais de critica-lo e repensa-lo. Fontcuberta está ciente do poder das imagens e de como elas são usadas como um instrumento de poder. Por isso, ressalta a importância da discussão e da educação visual.

 

A idéia é desafiar as disciplinas que se proclamam representantes do real – a botânica, a topologia, qualquer discurso científico, assim como a mídia, até a religião. Escolhi a fotografia porque era uma metáfora do poder. – Joan Fontcuberta

 

Assim como Cindy Sherman, Fontcuberta simula e joga com a suposta realidade fotográfica. Num movimento jocoso, que lembra a performance, ele simula realidades que dialogam com a falsidade da fotografia como reflexo da verdade externa. Em sua série Sputnik, ele trabalha a verdade da documentação histórica, e mostra imagens da missão do astronauta Ivan Istochinikov. Ivan foi um dos primeiros cosmonautas soviéticos; ele desapereceu porque seu voo Soyuz 2 foi um fracasso para as autoridades da época (1968). Nas imagens de Fontcuberta, o soviético aparece com seus colegas, em treinamento, prestes a entrar na cápsula, e o artista se pergunta porque o astronauta sumiu, como e quando? Contudo, o Ivan Istochinikov da série é na verdade o próprio Fontcuberta, que em um trabalho de fotomontagem coloca seu rosto nessas situações. Mais ainda, Ivan Istochinikov é a tradução russa de Joan Fontcuberta.

 

Mas porque a brincadeira? Para evidenciar a falsidade da mídia, e como somos enganados facilmente. Queremos acreditar. Acreditar é mais confortável do que desacreditar que implica em esforço e confronto. Recebemos passivamente as informações dos meios de comunicação e da internet porque não queremos gastar a enorme energia necessária para sermos céticos. A fotografia não é inocente, constrói realidades e discursos. Mas a realidade não existe sem nossa experiência.

 

Joan Fontcuberta, Sputnik, 2007

Fake news

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Fotografia e Migração

Um novo ano começa e o problema de migração mundial está longe de achar uma solução. Entre guerras e sofrimento, a crise dos refugiados continua. Sabemos que a imigração não é um problema novo, muito pelo contrário, já era amplamente discutida desde os antigos gregos. Na era moderna vivemos dois períodos migratórios intensos durante as grandes guerras. A fotografia tem sido usada para documentar o movimento de pessoas entre fronteiras geográficas e culturais há muitos anos. Os fotógrafos colocam um rosto na imigração, tornando visíveis e palpáveis seus deslocamentos, suas dificuldades e suas oportunidades também. 

 

Encorajando novas experiencias de responsabilidade e empatia com o espectador, a fotografia tem um papel fundamental de aproximar o problema da migração e aumentar e enriquecer seu debate e tomada de soluções. O problema é quando as imagens se tornam banais e já não temos mais reação diante das milhares de fotos que vemos: barcos lotados de pessoas atravessando mares, rostos exaustos e cansados, famílias sobrevivendo em campos… Quando isso acontece, o tiro saiu pela culatra, e a fotografia perde todo o seu valor, virando apenas uma publicidade oca e fútil.

 

 

O fotógrafo inglês Daniel Castro Garcia ganhou a bolsa W. Eugene Smith Memorial de 2017 com sua série “Foreigner” sobre os imigrantes. Tiradas na Sicília, França e Grécia, as imagens retratam histórias e vidas de pessoas tentando integrar uma nova cultura e novos hábitos. O projeto tenta se aproximar de cada imigrante, retratando cada história em parceria com a pessoa fotografada.

 

A Sicília é um lugar central dentro da narrativa européia da crise dos refugiados e da migração, onde os indivíduos são grosseiramente representados e escutados, e, em última análise, fazem parte de um sistema que pouco faz para integrá-los à sua nova sociedade. – Daniel Castro Garcia

 

Misturando imagens, depoimentos, parceria nas poses e retratos, e também filme, Daniel oferece uma voz, e sobretudo um diálogo entre objeto e público. Diálogo esse que cria humanidade.

 

 

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Sophie Calle, entre caça e caçador

A artista e fotógrafa francesa Sophie Calle está com uma estupenda exposição no museu da Caça em Paris. Em uma antiga casa de 3 andares, ela cria um jogo de rastros e pistas, onde vamos descobrindo as pegadas da artista contemporânea no meio do acervo de animais empalhados. Ela é a caça e somos os caçadores? Talvez. A experiência é bastante rica e sem notarmos, esse jogo nos aproxima mais da fotografia e suas fronteiras.

 

A exposição, com alguns trabalhos antigos da carreira de Sophie, é feita como homenagem ao seu pai que morreu. Morte, capturar a presença e a memória, perseguir histórias e imagens, apreender, aprisionar, fantasmas são alguns termos que rastreamos ao longo da exposição: através das obras da artista, da coleção do museu e das questões em torno da fotografia.

 

 

O cinema é a vida, a fotografia é a morte. – Susan Sontag

 

O trabalho de Sophie Calle tem uma estreita relação com sua vida pessoal. Ela dormiu no topo da Torre Eiffel (durante a primeira Nuit Blanche em 2002), passou a noite em uma cabine de pedágio na rodovia perguntando aos motoristas onde podiam levá-la, foi stripper, contratou um detetive para segui-la por vários dias, seguiu um homem aleatoriamente, pediu para estranhos dormirem com ela, e transformou tudo isso em obras de arte. Anos antes trabalhou com a morte da sua mãe: leu o diário da sua mãe em público, e filmou a morte de sua mãe, seu último suspiro, com seu acordo. Agora chegou a vez de lidar com a morte do pai. Ela caça esse novo rastro perdido.

 

O início da exposição trás a fotografia de um urso branco, que fica na entrada do museu, encoberto por um grande lençol branco, como um fantasma. Fácil de relacionar a morte com a fotografia; depois que a pessoa se foi, e fica apenas sua lembrança e suas fotografias – seus fantasmas – será que nos lembramos mesmo de como era a pessoa? De sua alma? A fotografia interpreta um momento, mas não mantém a pessoa amada conosco, a vida continua. A fotografia torna-se um lembrete constante de que o tempo passou e não voltará, que a pessoa se foi e não voltará.

 

A exposição continua com a presença da morte. Em um quarto com os ares de mausoléu, nossos olhos cruzam o próprio túmulo de seu pai recentemente falecido. Vemos também o que seria a última fotografia de seu pai, na FIAC, e um texto que explica o porque dessa foto ter sido tirada: “porque ele estava sorrindo. Porque na pintura atrás estava escrito silêncio…”.  É uma imagem singela, de nenhum significado para o público, fugaz, com alguns detalhes importantes do pai para a filha, mas tão aquém do que ele era, e tão pouco diante da ausência desse pai.

 

Em Mes morts (2017) Sophie transporta as pessoas que ela ama, mortos ou vivos, simbolicamente em animais empalhados, os personificando dentro dessas peles de animais. Como a fotografia: uma pele de uma imagem empalhada. Mes Morts é acompanhado por Deuil pour deuil (2017), uma instalação em que Serena Carone representa sua amiga Sophie em tamanho natural, como uma efígie mortuária, e todos os seus amados empalhados ao redor. 

 

 

Várias são as ideias que surgem quando pensamos em fotografia e morte. Mas qual seria a memória fotográfica? Não tenho resposta certa, mas diria que passa por uma prática humana natural, a necessidade de manter a memória do ente querido viva. Na língua latina “imago” significava o molde em cera do rosto dos mortos que era colocado em nichos em casa. Guardamos nossos porta retratos ou transformamos em instalações.

 

 

 

*a exposição Sophie Calle e sua convidada Serena Carone fica em cartaz até fevereiro 2018.

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Objetos achados: a fotografia e o ready-made

Para quem ainda não sabe, escrevo mensalmente no site da editora Subversos. Especializada originalmente em publicações psicanalíticas, a editora foi se abrindo para uma troca com outras areas, e hoje dialoga com diversas visões e especialidades, como a política, a literatura e, claro, a nossa querida fotografia.

 

Todo mês escolho um fotógrafo e falo sobre sua vida, suas referências, além das questões que suas imagens me trazem. Mês passado escrevi sobre Man Ray e a fotografia surrealista, contando um pouco de suas peculiaridades e fazendo um paralelo com o inconsciente psicanalítico. Ficou curioso? Acesse o link aqui e confira o post todo.

 

Man Ray e Marcel Duchamp, NY, 1914

O americano Man Ray foi muito próximo do artista vanguardista francês Marcel Duchamp, trabalharam juntos, desenvolveram teorias e colaboraram em diversos projetos.  Os dois foram apresentados em 1915, pelo marchand Walter C. Arensberg nos EUA.

 

Entre seus projetos em comum, estão os ready-made. O primeiro ready-made, “achado” por Duchamp, data de 1913 e consiste em uma roda de bicicleta colocada em cima de um banquinho, que só faz girar. Man Ray também criou outros tantos ready-made, os mais famosos seriam o ferro com pregos, ou o metrônomo com um olho. O conceito básico dos ready-made é tirar o objeto do mundo real com total indiferença e evidenciá-lo para o mundo. Porém, independente da vontade do artista, quando retirados objetivamente do mundo material, esses objetos acabam por entrar em um mundo particular, ganhando subjetividade, símbolos e significados.

 

Enigma de Isidora Ducasse, Man Ray. 1920

 

Roda de bicicleta, Marcel Duchamp, 1913

 

Encontramos assim o que seria praticamente o significado da própria fotografia, retirar do mundo objetivo uma imagem pessoal e subjetiva que ganha novas definições e alegorias. Os dois lidam com a apropriação do objeto de uma só vez, transformando o objeto e a imagem em novo símbolo da imaginação, que não experimenta uma resistência do mundo material. Duchamp perpassa esses conceitos para explicar seus ready-made – que ele também chama de múltiplos objetos ou objetos achados pelo mundo. E a fotografia afinal é isso, um objeto achado. Um fotógrafo cria a sua imagem a partir de alguma imagem pré-existente no mundo, a foto é basicamente uma imagem encontrada.

 

Essa é a ideia que Duchamp coloca em prática nos ready-made, objetos encontrados no mundo: réplicas. E as réplicas são múltiplas, assim como a fotografia, múltiplas na infinidade de possibilidades e questionamentos.

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