Imaginário urbano: fotografia, psicanálise, cidade e funk!

Essa semana participei dentro da programação do FotoRio Resiste, na Blooks Livraria, de um debate com o pessoal da Editora Subversos e o fotógrafo Vincent Rosenblatt, que misturou as relações entre fotografia e psicanálise. Foi extremamente interessante: um oásis de resistência que uniu diferentes áreas, discursos e interesses. Reproduzo aqui uma versão da minha fala.

 

Pensar a fotografia é uma tarefa complexa. Normalmente, entendemos a fotografia como a mídia do instante, diretamente ligada ao objeto externo. São inúmeros os textos que lidam com essa problemática, como por exemplo, Mensagem fotográfica de Roland Barthes.

 

“Que é que a fotografia transmite? Por definição, a própria cena, o real literal. – Roland Barthes

 

Nesse texto, Barthes expõe sua tese de que a fotografia não pode negar seu referente. Mesmo que tenhamos a edição do olhar, da cor, da proporção e da perspectiva, Barthes não nega isso, diferente do texto, a imagem fotográfica é “uma perfeita analogia da realidade”. Através da objetividade de um processo mecânico – o apertar do botão da máquina – é criada uma mensagem sem códigos, entre a imagem e o objeto.

 

Para o autor, não há um código substancialmente diferente entre foto e realidade, imagem e referente.

 

Mesmo hoje, com a fotografia digital, ainda guardamos um pouco desse imaginário fotográfico, acreditando que o que vemos na imagem é um congelamento de um instante real.

 

Vincent Rosenblatt

 

Mas como falar em imaginário então, se a fotografia está tão consolidada ao objeto real fotografado?

 

Aqui introduzo o fotógrafo francês Vincent Rosenblatt e sua série sobre o baile funk carioca. Por um lado, a série “Rio baile funk”, que Vincent trabalha desde 2005 quando chegou ao Rio meio por acaso, trabalha com o referente, documentando o surgimento, o apogeu e o desaparecimento dos bailes funk do Rio de Janeiro. O funk era cria da periferia carioca, virou patrimônio cultural em 2008 até ser dizimado nos dias de hoje, pelas proibições, rixas, ignorância, ganância e censura religiosa, política e econômica. Vincent clicou um momento na história carioca que existiu e não existe mais: a história e os personagens do funk.

 

Vincent Rosenblatt, Rio baile funk

Como todo fotógrafo descobrindo seu tema, Vincent teve que entender os códigos e sensibilizar o olhar. Precisou encontrar os djs e as pessoas certas que fizessem as introduções necessárias entre os diferentes poderes paralelos. Do seu lado começou a entender a cultura do funk, suas letras, seus MCS e toda a produção por trás dessa expressão cultural da periferia. O funk foi e é uma criação cultural carioca enorme, uma ação espontânea de pulsação vinda da periferia que escancarou com a liberdade de expressão. Antes da “pacificação” eram mais de 400 bailes por semana no estado do Rio. Suas letras são fortes, diretas e contam todo o cotidiano das favelas.

 

Essa história que resumo rapidamente, de como essa série se iniciou e Vincent virou o fotógrafo oficial dos bailes funk, perpassa vários imaginários. Existe o imaginário do perigo dos bailes: da putaria, do proibido. Por outro lado, a presença de Vincent carrega um imaginário, com várias pessoas de olho nele e em suas imagens: quem seria esse fotógrafo gringo na comunidade fotografando (pq? para q? para quem?). Carrega também a crítica de alguns que o estigmatizaram como gringo pervertido fotografando a putaria funk carioca.

 

Temos ainda o imaginário religioso, político e económico que juntos conseguiram abafar o som das letras do funk. O próprio funk também perpassa um imaginário pois suas letras cantam algo que não acontece no baile: a putaria cantada não é a realidade do baile, é imaginário.

 

E temos ainda o nosso imaginário, falando e vendo essas fotografias. São camadas de imaginários que perpassam as imagens de Vincent.

 

Vincent Rosenblatt, Rio baile funk

 

Pois é, a fotografia não é realidade instantânea, nem congelamento de uma fatia de tempo e de real. Vincent não captou meramente talhas de instantes do baile funk, momentos congelados no tempo que não existem mais. Vincent criou imagens que são camadas de memória: da cidade, da cultura, dele e nossa. Vincent, e a fotografia perpassam vários imaginários: de pulsação, de criação, de liberdade. Quebrando tabus e resistências.

 

A fotografia é duração no sentido bergsoniano: uma temporalidade vivida através das mudanças sucessivas da consciência interior, uma mistura de estados e tempos subjetivos, um passado que se liga a um futuro mas que não desaparece, se conserva, em um ir e vir. A duração está intrinsecamente ligada aos fenômenos da vida, ela é consciência, memória e liberdade.

 

 

Vincent fotografa resistência: política, social, cultural, de ontem, hoje e sobretudo de amanhã, nossa e da cidade. Fotografa a força vital frente ao apagamento. E isso é fotografia no seu sentido mais amplo e interessante: fotografar um duração vital das coisas, para tecer um diálogo entre imagem e espectador, real e ilusório, passado e presente, futuro e passado… Ou seja, entre os diferentes tempos e imaginários que nos perpassam.

 

O mundo não corresponde exatamente a esta realidade que vemos tão palpável a nossa frente. Aliás, muito pelo contrário, essa suposta realidade não é nada além de um capricho do imaginário, em um universo onde, em tons coloridos e com a luz do flash, vemos a transfiguração e o erotismo inatingível, fantástico e pleno do funk de Vincent.

 

“Se não for para causar, eu nem saio”. – Berro (part. Tati Quebra Barraco e Lia Clark)

 

 

 

Continue Reading

Nossas memórias, nossas ruínas

Semana passada, a minha colaboração mensal no blog da Editora Subversos falou de ruínas em relação à série A última aventura de Romy Pocztaruk. Aqui no post resolvi abarcar outros muitos fotógrafos que retrataram as ruínas urbanas de nossa sociedade. Como somos facilmente fascinados pelos destroços do que um dia foram grandes marcos de nossas cidades, muitos artistas se interessaram e clicaram o que sobrou desse sonho grandioso de outrora.

 

As ruínas ficaram tão famosas nas mídias sociais, sobretudo no instagram, que ganharam expressão própria: “ruin porn”. É a beleza do caos, o prazer na destruição. Quase um movimento romântico contemporâneo. Mas independente dos modismos, as ruínas fotográficas e urbanas, podem nos ensinar muito sobre nós mesmos. O que um dia pensamos ser e como nos desenvolvemos, o que se perdeu, o que se ganhou. Nossas experiências com sistemas políticos e culturais.

 

Ruínas de shoppings, antigos templos consumistas que hoje perderam espaço para as compras online, ruínas de cidades operárias pelo mundo, substituídos por máquinas, ruínas de vidas, de sonhos, de ideais.

 

Ruínas de Detroit, Meffre e Marchand, 2005

Investigar o modo como as camadas temporais se imbricam nas ruínas urbanas, perpassa investigar como nós nos vemos e construímos nossos ideais: de país, de nação, de humanidade. A ruína nos leva ao cruzamento exato entre passado e presente, entre o que poderia ser e o que se imaginou ser, e o que de fato aconteceu.

 

 

Para ler o texto na íntegra, basta acessar aqui.

 

 

Hikari, Japão, 2009, Thomas Jorion

 

Seph Lawless, Centro Comercial, 2002

 

Elementar, 2009, Sven Fenemma

 

 

Julio Bittencourt, Kamado, 2015

 

Ilan Benattar, Hospitais, 2013

 

Continue Reading

O envelhecimento e a fotografia, anos de parceria

Pois é, os anos passam, e nós comemoramos aniversários, e os anos passam, e mais festas, e os anos passam… Bom, você já entendeu onde eu quero chegar, né? Todos nós envelhecemos! E a fotografia nos tempos de hoje, com seus filtros mágicos, só faz retardar esse processo, simulando uma juventude eterna, aliada às cirurgias plásticas e aos processos dermatológicos.

 

Até os canalhas envelhecem. – Nelson Rodrigues

 

Mas no fim do dia, ou da vida, envelhecemos. E a imagem meio lavada da infância (ou dos #tbt do instragram) nos escancara essa passagem do tempo. Algumas pessoas, como a Sissi, ficaram com a fama de não se deixarem fotografar depois de uma certa idade, justamente para não ter que encarar de frente as mudanças dos anos. Porém, por mais truques que usemos, por mais filtros que coloquemos, o corpo muda, o metabolismo desacelera, a mente se fortalece, as prioridades se renovam, mudamos o corpo físico e o lado psicológico também. Envelhecemos, para o bem e para o mal, num ato de adaptação constante das transformações que passamos. Entre aceitação e medo, definição e busca, envelhecemos.

 

Abaixo alguns fotógrafos que tentaram traduzir esse processo da vida, que pode não ter data exata para chegar, mas que vem para todos.

 

Sarah Bloom (EUA) – Self, abandonada, 2009-2018

 

Material Rejeitado

 

Uma mulher pensante dorme com monstros

 

Sally Mann (EUA) – Fotos de família, 1984-1991

 

 

Sasha Glodeberg (FR) – Mamika, 2007

 

 

 

Continue Reading

Vamos falar sobre o fotolivro?

O termo fotolivro – ou livro de fotografia, ou ainda livro de artista – tem sido cada vez mais utilizado no meio da fotografia. Mais do que isso, cursos, prêmios, editoras estão cada vez mais investindo nesse caminho. Recentemente, escutei da fotógrafa Claudia Jaguaribe, que além de fotógrafa também tem a editora Madalena de fotolivros, que a fotografia é a melhor mídia para o livro, pois é uma obra em si. Essa frase me fez querer pensar o formato da fotografia em livro.

 

Diferentemente da pintura, que tem suas imagens reproduzidas nos livros, ou o vídeo ou a performance, a fotografia em formato de livro não é uma reprodução mas o trabalho em si. E, diferentemente da exposição na parede, pode encontrar milhões de alternativas originais de apresentação. O fotolivro é em si uma arte dotada de estrutura própria, narrativa intricada e coerência visual e intelectual.

 

Gerry Badger descreve o fotolivro como “um tipo particular de livro fotográfico, em que as imagens predominam sobre o texto e em que o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico contribui para a construção de uma narrativa visual”. É apenas uma descrição, dentre tantas possíveis. Aqui gostaria de abrir um pouco mais essa definição, e pensar em projetos fotográficos que desde o início foram feitos para serem vistos na forma de livro. Muitos fotógrafos se consagraram ao longo da história da fotografia e vários são os exemplos de fotolivros ícones: The Americans, 1958, de Robert Franck, American Photographs, 1938, de Walker Evans, The Golden Years, 1995, Nan Goldin, Think of England, 2000, de Martin Parr, Genesis, 2013, de Sebastião Salgado, entre tantos e tantos outros.

 

 

A obra é a extensão de seu autor, e o fotolivro é uma de suas melhores traduções.

 

Através da sequencia de imagens – textos, e objetos- uma relação visual é criada entre as fotos; criando metáforas, simbologias, narrativas, e acrescentando mais camadas e profundidade ao ensaio do fotógrafo. O fotolivro não é um punhado de imagens colocadas juntas aleatoriamente, mas, como já descreveu Gerry, um trabalho de vários profissionais em pensar o ensaio dentro de um tema, uma forma, um estilo e uma ideia maior que perpasse um conjunto de imagens.

 

O fotógrafo Ivan Padovani, por exemplo, tem um lindo fotolivro do seu trabalho “Campo Cego”. Querendo mostrar o caos da cidade através das empenas dos prédios de São Paulo, suas imagens são impressas em papel transparente, criando camadas de linhas e formas visuais.

 

Ivan Padovani, Campo Cego, 2015

 

O fotolivro permite duas outras coisas. Primeiro, atingir um público maior, democratizar a obra de arte, e quebrar com a obra numerada, assinada e emoldurada na parede da galeria ou museu. Segundo, de criar um diálogo mais intimo com esse público. Ao folhear o fotolivro, como qualquer livro, somos transportados a um lugar, a uma sociedade, a uma história pessoal. Podemos voltar, reler, parar, ficar e saímos do registro documental da imagem para uma conversa pessoal e criativa.

 

O livro de artista nada mais é que a obra de arte pensada no formato livro/publicação. É mais uma rica oportunidade para fotógrafos e artistas de explorar outras linguagens e conexões.

 

Continue Reading

Sophie Calle, entre caça e caçador

A artista e fotógrafa francesa Sophie Calle está com uma estupenda exposição no museu da Caça em Paris. Em uma antiga casa de 3 andares, ela cria um jogo de rastros e pistas, onde vamos descobrindo as pegadas da artista contemporânea no meio do acervo de animais empalhados. Ela é a caça e somos os caçadores? Talvez. A experiência é bastante rica e sem notarmos, esse jogo nos aproxima mais da fotografia e suas fronteiras.

 

A exposição, com alguns trabalhos antigos da carreira de Sophie, é feita como homenagem ao seu pai que morreu. Morte, capturar a presença e a memória, perseguir histórias e imagens, apreender, aprisionar, fantasmas são alguns termos que rastreamos ao longo da exposição: através das obras da artista, da coleção do museu e das questões em torno da fotografia.

 

 

O cinema é a vida, a fotografia é a morte. – Susan Sontag

 

O trabalho de Sophie Calle tem uma estreita relação com sua vida pessoal. Ela dormiu no topo da Torre Eiffel (durante a primeira Nuit Blanche em 2002), passou a noite em uma cabine de pedágio na rodovia perguntando aos motoristas onde podiam levá-la, foi stripper, contratou um detetive para segui-la por vários dias, seguiu um homem aleatoriamente, pediu para estranhos dormirem com ela, e transformou tudo isso em obras de arte. Anos antes trabalhou com a morte da sua mãe: leu o diário da sua mãe em público, e filmou a morte de sua mãe, seu último suspiro, com seu acordo. Agora chegou a vez de lidar com a morte do pai. Ela caça esse novo rastro perdido.

 

O início da exposição trás a fotografia de um urso branco, que fica na entrada do museu, encoberto por um grande lençol branco, como um fantasma. Fácil de relacionar a morte com a fotografia; depois que a pessoa se foi, e fica apenas sua lembrança e suas fotografias – seus fantasmas – será que nos lembramos mesmo de como era a pessoa? De sua alma? A fotografia interpreta um momento, mas não mantém a pessoa amada conosco, a vida continua. A fotografia torna-se um lembrete constante de que o tempo passou e não voltará, que a pessoa se foi e não voltará.

 

A exposição continua com a presença da morte. Em um quarto com os ares de mausoléu, nossos olhos cruzam o próprio túmulo de seu pai recentemente falecido. Vemos também o que seria a última fotografia de seu pai, na FIAC, e um texto que explica o porque dessa foto ter sido tirada: “porque ele estava sorrindo. Porque na pintura atrás estava escrito silêncio…”.  É uma imagem singela, de nenhum significado para o público, fugaz, com alguns detalhes importantes do pai para a filha, mas tão aquém do que ele era, e tão pouco diante da ausência desse pai.

 

Em Mes morts (2017) Sophie transporta as pessoas que ela ama, mortos ou vivos, simbolicamente em animais empalhados, os personificando dentro dessas peles de animais. Como a fotografia: uma pele de uma imagem empalhada. Mes Morts é acompanhado por Deuil pour deuil (2017), uma instalação em que Serena Carone representa sua amiga Sophie em tamanho natural, como uma efígie mortuária, e todos os seus amados empalhados ao redor. 

 

 

Várias são as ideias que surgem quando pensamos em fotografia e morte. Mas qual seria a memória fotográfica? Não tenho resposta certa, mas diria que passa por uma prática humana natural, a necessidade de manter a memória do ente querido viva. Na língua latina “imago” significava o molde em cera do rosto dos mortos que era colocado em nichos em casa. Guardamos nossos porta retratos ou transformamos em instalações.

 

 

 

*a exposição Sophie Calle e sua convidada Serena Carone fica em cartaz até fevereiro 2018.

Continue Reading