Um ano depois: entre memórias, dor e imagens

Entre o ataque terrorista do Bataclan em Paris e o rompimento da barragem de Mariana em Minas Gerais, se passou 1 ano.

 

Depois desse distanciamento temporal o que ficou dessas duas catástrofes?

 

De um lado, relatos de jovens sobreviventes aterrorizados pelas lembranças e marcas da armadilha que se encontraram (uma casa de show fechada onde terroristas atiravam ao léu), uma população amedrontada com o terrorismo crescente tido como inconsequente, e um governo lutando para entender quem é o inimigo e como combate-lo, criando medidas, fazendo alianças e atacando de volta. Do outro lado, a maior catástrofe ambiental brasileira que contaminou rios com metais pesados e compostos químicos, matou e desabrigou pessoas, atingiu reservas ecológicas, eliminou espécies animais, acabou com a vida e o sustento de populações ribeirinhas. Nem em um canto do mundo, nem no outro, soluções foram encontradas, os culpados pagaram ou as vítimas foram indenizadas. Muito pelo contrário, as feridas continuam abertas.

 

O rio já sabia que ia ser morto. Quando a sujeira veio, ele foi subindo chorando, fazendo barulho. E minha mãe chorando junto. – Tatiana, da tribo Krenak.

 

Pensando em fotografia e catástrofe, seja ela natural ou gerada pelo homem, podemos falar de uma incompatibilidade entre ambas. A dimensão temporal da catástrofe não seria consistente com a natureza instantânea da fotografia. Um desastre é um evento que espalha sofrimento em grande escala. Mais do que isso, ele se estende em todas as escalas possíveis: no espaço, no tempo, na história, no íntimo. Já a imagem é produzida no momento presente: no delineamento do visor, do olhar do fotógrafo, do meio em que é vista. Como apontam muitos críticos da fotografia, a foto não tem o poder de explicação ou análise do acontecimento trágico.

 

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Bruno Veiga, Deserto Vermelho, 2016

 

Uma fotografia trai a verdade histórica na medida em que ela representa o passado ao invés de revelá-lo no presente. – bruno chaouat

 

Além disso, nós experimentamos um sentimento estranho ao olhar as representações de catástrofes: existe uma oposição entre o fluxo de imagens sobre a realidade trágica e a nossa capacidade em responder adequadamente à representação desta tragédia, seja pelo lado emocional, prático, ético ou político. Somos inundados com fotos de desastres publicadas na mídia que de certa forma banalizam o evento e com isso abstraímos a representação dessa realidade agressiva. Operamos um distanciamento e uma dissociação diante do espetáculo promovido pelas redes de comunicação.

 

Fora as questões éticas que perpassam algumas imagens que exploram o sofrimento alheio com um voyeurismo perverso unicamente para chamar atenção.

 

A arte não reproduz o visível, mas torna visível. – Paul Klee

 

Por isso, existe um enorme desafio para o fotógrafo que se propõe a registrar imagens de desastres. Como os dois ensaios que gostaria de falar: Deserto vermelho, de Bruno Veiga1974-2015 : Paris, ville meurtrie par les attentats, de Alexandre Guirkinger.

 

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Bruno Veiga

 

Seis meses após o desastre em MG, o fotógrafo Bruno Veiga decidiu retratar os rastros deixados na região através dos efeitos da enxurrada de lama no rio Gualaxo do Norte. Ao invés de escancarar o drama pessoal das vítimas, ou estetizar os horrores das ruínas das cidades devastadas pela lama tóxica, Bruno se relacionou com o tempo. Em um primeiro momento ele adia a ida à região para poder “pesquisar as dimensões do problema no pós-tragédia”, passado o calor do momento. Graças a esse distanciamento do tempo e da urgência, ele consegue abarcar nas suas fotografias o transbordamento das escalas da catástrofe. Suas imagens das margens do rio com sua vegetação cortada por uma linha vermelha, reta, quase perfeita, evocam claramente o desastre da lama, mas sem apelos. A linha é agressiva pois percebemos que não é natural ao meio tornando a paisagem surrealista. A mensagem é objetiva, mesmo que sutil.

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Essa linha também mostra a escala temporal do desastre: na parte de baixo, os vestígios da lama vermelha que tomou o lugar de um rio outrora rico em vida e hoje morto; na parte de cima, a vegetação verde, sobrevivente, tentando respirar e olhar para frente. No detalhe da catástrofe, no íntimo do recorte das árvores, Bruno ultrapassa o limite do recorte fotográfico e propõe ao espectador dialogar com vários significados da tragédia e seus vários tempos.

 

 

O olhar que aqui se propõe aspira a algo como uma arqueologia do presente – porque o presente, em alguma medida, não cabe mais em si, é um enlace de tempos: de um passado que não é mais com um futuro que não será. – Eduardo Sterzi, revista Zum

 

 

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1974 – 2015 : Paris,ville meurtrie par les attentats, Alexandre Guirkinger, 2016

 

Em seu ensaio, Alexandre passa por 8 lugares onde o terrorismo atacou a cidade de Paris. Entre 1974 e o atentado do Bataclan em 2015 foram 191 mortos e 1800 feridos por atos terroristas nesses 8 marcos: uma casa de show, uma loja, uma estação de metro, um jornal… Ele mistura imagens de época com imagens suas, atuais, de detalhes da vida cotidiana no presente. Em seu ensaio também existe um diálogo temporal que fala diretamente com o passado mas que faz referência ao futuro desses ambientes e dessas pessoas que hoje continuam perpassando esses lugares corriqueiros da vida parisiense.

 

Com uma oposição mais óbvia os mostrar lado a lado as imagens apelativas do instante da catástrofe e as imagens cotidianas de hoje em dia, podemos perceber nitidamente um confronto entre tragédia e sobrevivência, vida e morte, espetáculo e naturalidade, “continuidade (a catástrofe) e descontinuidade (a foto), totalidade e singularidade”, urgência e distanciamento. Confronto que também é percebido nas imagens de Deserto Vermelho.

 

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Eu diria que em seus ensaios, os fotógrafos se propuseram a capturar o momento que constitui o silêncio. O momento da mente começar a raciocinar e os olhos abrirem após o caos e a destruição. O momento após sermos atordoados pela explosão de imagens e depoimentos, pela urgência dos fatos e números, pelas análises da mídia. O momento quando Paris, devolvida à sua banalidade quotidiana, retoma o fluxo normal de vida, e que a Samarco continua com seu empreendimento. O momento de um silêncio antes de continuarmos as discussões, as ações e os protestos.

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