Sobre as minhas últimas leituras

(ou adentrando o universo dos livros de fotografia)

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Faz um tempo ouvi a mexicana Ana Casas Broda falando online e me dei conta o quanto não sei nada de livros de fotografia. E que universo fantástico! Durante o FotoRio 2020 mediei uma live sobre livros de fotografia com o Rony Maltz da {Lp} Press e o Martin Bollati da Felifa (uma das primeiras feiras de livros de fotografia da América Latina). Outra aula aberta incrível.

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Descobri a potência, a vitalidade, a resistência e o ativismo dos zines, as novas feiras de arte impressa pela América latina e as diversas editoras que estão surgindo. O trabalho minucioso, longo e exaustivo de edição, que passa não só pela escolha das imagens mas do papel, do formato… e tantas outras escolhas.

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Deus também descansa, Bruno Bou Haya, 2020

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Será que para os livros de fotografia o verbo ler ainda funciona?

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Descobri as dificuldades da semântica e da semiótica (me confundi também nessa parte). E descobri como contar uma história ou passar um sentimento em tamanhos diferentes que cabem na mão e que podemos levar para cama com a gente. Ou seja, é uma forma de curadoria, com edição mas acrescentando outras questões. Interessantíssimo!

Beijo, projeto 52 zines, {Lp} press, 2018

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E nessa época incerta, onde as trocas físicas são raras e perigosas, o livro de fotografia perdeu muito com a virtualidade. Temos menos possibilidade de tocar o livro, de enviar e receber, de descobrir seus autores. E se uma imagem já perde muito no mundo virtual, o livro de fotografia então, nem se fala.

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Por isso fico feliz em ver tantos livros de fotografia bons sendo editados por fotógrafos contemporâneos brasileiros. Alguns eu tive a sorte de pegar, folhear e admirar. Outros ainda estou na vontade. Vejo que todos são frutos de muito trabalho, por parte dos artistas e editoras, e resistência diante de tanto descaso com a cultura em nosso país, além de estarmos em plena pandemia.

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Tive a sorte de comprar e receber o livro “15:30” de Isis de Medeiros, sobre o crime das mineradoras em Minas gerais, lançado em 2020 pela editora Tona. Assim como o livro “Deus também descansa” de Bruno Bou Haya sobre a migração libanesa a partir de sua história particular, lançado em 2020 pela editora Vento Leste. E os livros “Vertentes”, “Terra Roxa” e “Solidão”, feitos à mão pelo José Diniz e que são joias de tão preciosos.

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Fico aguardando o fim dessa pandemia para poder ter acesso a outros tantos lançamentos. Parabéns a todos!

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Ser solteira na China ou o contentamento da conformidade

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Yingguang Guo é uma fotógrafa chinesa de 35 anos. E solteira. Porém, culturalmente, ser solteira na China nessa idade é um problema ainda hoje. Cá entre nós, não é só na China que estar solteira aos 35 anos é visto como um problema. As pressões brasileiras para a mulher casar o mais rápido possível aos 35 anos também são fortes e eficazes.

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Mas voltando a nossa jovem fotógrafa chinesa que ficou “pra titia”… Diante dessa cultura tradicionalista, ela resolveu fazer um ensaio sobre a problemática. “O contentamento da conformidade” é o título de sua série que perpassa questões culturais chinesas sobre o casamento arranjado. E também questões pessoais da fotógrafa. Guo trabalha com fotografia, vídeo, instalação e performance para conseguir abarcar as nuances dessa temática.

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A China é uma enorme potência mundial, passando por um enorme crescimento econômico, mas isso acontece tão rapidamente que muitas coisas acontecem paralelamente. Como a emancipação das jovens chinesas e a tradição do casamento arranjado. Dois movimentos opostos que andam juntos na China atual. É no People’s Park, em Xangai, que os pais se reúnem para “venderem” seus filhxs solteirxs. Eles andam com cartazes sobre os filhxs, na esperança de os casarem. Um tinder à moda bem antiga!

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Yingguang Guo, The bliss of conformity, 2016

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É tipo um anúncio, feito pelos pais (sem xs filhxs saberem) que indica os melhores detalhes e as qualidades dos jovens. Banalidades como qual a altura, idade, hobby, emprego… Até detalhes mais sórdidos como o valor do salário, se tem casa própria… Há um conjunto padronizado que faz com que alguns sejam “mercadorias mais valiosas”. Ou em outros termos, seja um bom partido. O requisito básico da mulher é a idade, obviamente. Quanto mais nova, melhor. Para o homem, quanto mais rico, melhor.

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“A virtude de uma mulher está em sua falta de talento.” – pai no People’s Park

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Guo faz seu próprio anúncio e vai ao parque se vender, como uma performance. Ela grava os diálogos e os encontros. Além disso, seu trabalho ainda apresenta fotografias do parque e conversas com pessoas que vivem em casamentos forçados. O resultado pode ser visto em um livro delicado e elegante, cheio de recortes, fios e ligações.

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Vencedora do prêmio Figaro de 2018, Guo expôs seu trabalho no festival de Arles do mesmo ano. Sua série é toda em preto e branco, pesada e esvaziada de alegria. De maneira direta e abstrata, a artista desvela conscientemente o custo emocional por trás dessas expectativas e pressões sociais. Sua jornada cultural, e ao mesmo tempo interior, indaga sobre a intimidade forçada, a dor de se contentar com a conformidade e a agressividade ao tratar de sentimentos delicados em nome de expectativas sociais. Detalhes de uma China em mutação mas que falam a todos.

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Nikola Mihov, um observador da nossa sociedade de consumo

Há poucos dias descobri o fotógrafo búlgaro Nikola Mihov. Baseado entre Paris e Sofia, Nikola  desenvolve um trabalho que destaca a relação entre o espectador e o seu entorno, que pode ser uma obra de arte – como seu trabalho sobre a Monalisa, o bar Bataclan, marcado pelos atentados de 2015 em Paris, ou os antigos monumentos comunistas da Bulgária. O que interessa ao artista é a evolução do que se torna o observador na nossa sociedade atual de consumo. Nikola se faz cada vez mais presente no meio fotográfico, participando de diversas exposições e festivais, como os Encontros de Arles e o Paris Photo 2017, onde lançou seu terceiro livro.

 

Em seu trabalho Processando…, lançado ano passado, Nikola fotografa a relação do público do museu do Louvre diante do famoso quadro da Mona Lisa. Pintado por Leonardo da Vinci em 1503, a Mona Lisa é considerado o quadro mais famoso do século XX, tendo o sido o mais comentado, falado e visitado no mundo. Estimado em mais de 750 milhões de euros, mais de 15 milhões de pessoas, por ano, passam diante de sua redoma para ve-lo, ou melhor, fotografa-lo. Com seu sorriso enigmático, diríamos que a Joconda olha ironicamente para o circo que se fez ao seu redor: a multidão é tão densa que o desconforto e até mesmo a violência se instalam. Aqui o sujeito é central e o quadro não passa de um adorno que irá estampar as mídias sociais. Mil pessoas se acotovelam para fazer seu selfie com a vedete. Fotografar tem outro significado além do “estive aqui”: “consumi isso aqui”.

 

Nikola Mihov, Processing, 2017

Nikola Mihov, Processing, 2017

 

 

 

 

 

 

 

Nikola também fotografou a abordagem das mídias internacionais diante dos atentados de novembro 2015 em Paris na série Olá e bem vindo a Paris. Focando apenas nos rostos e trejeitos dos jornalistas televisivos, Nikola retrata os gestos convencionais e dramáticos padronizados pelo jornalismo corporativo. Em detalhe, ele também mostra as frases-chaves que seguem as regras institucionais da rotina editorial e permanecem impressas em nossa mente. O fluxo repetitivo de notícias sobre os atentados em geral forma a imagem do horror, o convertendo em um produto de consumo de massa. Tal como a publicidade, que reveste a realidade para vender, a mídia sobreexpõe notícias negativas para ganhar audiência. Aqui Nikola mostra a relação fantasmagórica do espectador com seu entorno, que de novo se torna um acessório orbitando ao redor da mídia.

 

 

 

 

*Fotos acima de Nikola Mihov, Hello and Welcome to Paris, 2015

 

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Fotografia e música

Recentemente comecei a me interessar pelos diálogos possíveis entre a música e a fotografia. Os diferentes planos, a organização espacial e temporal, o dentro e o fora de campo, repercussão, permanência, repetição… – esses são alguns conceitos que se confundem nos dois campos e que dão asas à imaginação nas possibilidades de aproximação e discussão.

 

Dentro da minha pesquisa acabei esbarrando com a exposição do projeto a 4 mãos Saturnium, da fotógrafa SMITH com o músico Hoang. O projeto fala de um elemento químico inventado -Saturnium – que teria sido encontrado por Marie Curie e que teria a propriedade de modificar o espaço-tempo. A partir dessa narrativa, os dois artistas exploram, pela música e pela imagem, as possibilidades da catástrofe e do apocalypse nas produções contemporâneas e também na filosofia. Saturnium alavancaria os sonhos, a revolução, a força com o intuito de acordar o espectador para o que o excede.

 

 

Ele chamou os animais de “o pó que anda”, e os homens de “a terra que fala” … A terra que fala, porque somos da terra … A zona atrai … Eu digo a vocês. Quem foi lá … é atraído.

                    – Svetlana Alexievich, A súplica, JC Lattès, 1997.

 

 

 

 

Eu achei o projeto mais interessante na teoria do que na prática, mas fiquei extremamente interessada nesse diálogo entre imagem e som, e com essa enorme viagem dos sentidos e do pensamento. Tive uma grata surpresa ao descobrir que o projeto foi financiado e desenvolvido graças a um Prêmio bienal da Swiss Life que está em sua segunda edição. Pensado especificamente para promover as conexões entre música e fotografia, achei esse prêmio revolucionário. Em sua primeira edição, o projeto premiado se intitulava Bobba, e consistia em uma ópera de câmara, imagética, que perpassava o universo do artista Marc Chagall. Concebido pelo fotógrafo Julien Taylor e pelo compositor Arthur Lavandier, as imagens de Bobba fazem a imaginação voar ainda mais alto acompanhada pelos instrumentos e sons da narrativa.

 

Esse prêmio é ainda mais rico pois permite que esses projetos se expandam para uma nova troca: com a literatura. Após a exposição de cada um, eles são publicados em formato de livro impresso, dialogando com o texto e a palavra e acrescentando mais ainda a essa viagem dos sentidos.

 

Bobba, 2014

 

Termino o post fazendo um pedido, se alguém conhecer outros projetos ou pessoas que trabalhem com essa ponte entre som e imagem, estou muito interessada em conhecer e divulgar.

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Fotografia e Poesia

Fotografando

 

Hoje essa delícias do banal me lembram

quando eu te amava à distância –

trope galope de dois cavalos pelo mato

abro o livro do dever muito depressa

sacudo as folhas do alto da cabeça

e cai um aviso, mania de segredamento

“naquele dia…”

Lampejei.

 

– Ana Cristina Cesar

 

 

Felipe Fittipaldi, Eustasia

 

 

Como rasurar a paisagem

 

A fotografia

é um tempo morto

fictício retorno à simetria

 

secreto desejo do poema

censura impossível

do poeta

 

– Ana Cristina Cesar

 

 

Felipe Fittipaldi, Eustasia

 

Felipe Fittipaldi, Eustasia

 

*Ana Cristina Cesar foi uma poetisa brasileira da década de 70 e 80 muito importante para o movimento da Poesia Marginal. Homenageada na Flip 2016, ela ganha uma fotobiografia organizada por Eucanaã Ferraz e produzida pelo IMS: Inconfissões: fotobiografia.

 

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