Fotografia, urbano e evolução

As cidades, desde a revolução industrial, cresceram muito, se transformaram de maneira pungente e quase inapreensível. Nessa constante pulsação do urbano, é difícil ter a dimensão das mudanças arquitetônicas e humanas aos longos dos anos. Quando escutamos, por exemplo, os relatos das alterações sofridas no centro do Rio de Janeiro depois da destruição do Palácio Monroe, ou da construção do aterro, será que abrangemos mesmo todas as variações? Paris antes e depois do prefeito Haussman, São Paulo depois da onda migratória do início do século XX, ou ainda Nova Iorque depois das ações políticas e policias em Manhattan e a formação de Brasília… Os exemplos são inesgotáveis: a cidade está em constante transformação.

 

Thomaz Farkas, Brasília, 1959

 

Os grandes centros, ao redor do mundo, estão em um movimento eterno de destruição e reconstrução de identidade. A fotografia acaba sendo uma incrível ferramenta para tentarmos manter uma dimensão histórica da urbe e um certo sentido no emaranhado de tantas memórias dilaceradas. Os registros fotográficos conseguem abarcar as novas paisagens: os altos prédios no lugar das antigas casas, os novos muros, as ruínas acumuladas, as estradas apagadas, épocas e eras sobrepostas.

 

No IMS de São Paulo esse deslocamento do urbano pode ser muito bem apreendido em três ensaios visuais sobre a metrópole paulista. Com a participação de fotógrafos como Cássio Vasconcellos, Henri Ballot, Thomaz Farkas, Marc Ferrez, entre outros, podemos ver de maneira bem didática as novas formas visuais que a cidade nos oferece. E nesse exercício de recuo, proporcionado pela fotografia, redescobrimos nosso lugar individual dentro dessa rede coletiva em transformação. Nosso espaço corporal e identificatório previamente dado é colocado em questão e nos voltamos para novos pontos de vista.

 

Dentre esses ensaios apresentados no IMS, temos alguns exemplos da série “Rua direita” de Claudia Andujar. Se colocando no chão com sua câmera, no meio de uma das ruas mais movimentadas de São Paulo, Claudia interrompe o fluxo contínuo da massa urbana. Os olhares que ela capta de um ponto de vista invertido, mistura a opressão do indivíduo diante do coletivo, e a dificuldade de se criar uma identidade diante do olhar um tanto opressor da cidade.

 

Claudia Andujar, Rua direita, 1970

 

 

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Diálogos: literatura e fotografia

Ando com vontade de dialogar. Acho que o entorno tem favorecido a esse anseio. Com isso, propus a uma grande escritora, e também blogueira do Chez Maiato, um diálogo entre campos artísticos: literatura e fotografia. A proposta funcionou da seguinte maneira: a partir do tema REAL a escritora Renata Maiato escreveu o texto Despedida e com esse tema em mente, e suas palavras, eu tive que pensar em imagens que acrescentassem. Me inspirei no olhar do fotógrafo Julio Bittencourt para entrar nessa discussão.

 

Julio Bittencourt, Numa janela do edifício Prestes Maia, 911, 2006

 

Despedida

Aqui, do meu lugar, posso falar das coisas que eu sei. Do que vivi e que busquei, de todas as coisas que aprendi e o que você me ensinou. Sei da chuva que secamos, e da felicidade maior, sei que ela existe. Olho para sua imagem talhada no altar e vejo a vida, meu passado e meu futuro, meu presente escancarado, tudo aquilo que me brota.

Desde que voltei sinto diariamente os efeitos daquele lugar. Com dificuldade ando pra frente, porém com o olhar curvo, buscando uma página anterior. Quase não me reconheço aqui, onde foram parar tantos medos? A verdade é que ainda me sinto só. Ninguém jamais vai saber ou entender o que mudou do lado de dentro. É como se meu desejo de abrir o coração finalmente tivesse acontecido e agora está tudo muito concreto, muito certo, muito real.

 

Real demais.

 

Despeço-me de quem fui sem dor, como histórias de cristal que se quebram facilmente. A separação se faz, assim, do inimaginável. Da necessidade de correr, da vontade de viver, da vontade de morrer, assim, de tanta vida. É tudo tão raso, papéis, funções, egos; o que sangrava mesmo por dentro? Despeço-me de minhas dores abafadas pelo êxtase, tenho amores e incertezas agarrados nas entranhas. Não entendo do caminho das almas, mas sei que as nossas andam juntas.

O olhar sereno confessa minha fraqueza. Porque você representa tudo o que me assusta; amor, sossego, uma noite tranquila. Sou dada aos grandes saltos, enxergo melhor no escuro, busco o incerto. Acostumei-me com a inquietude, estranho a calma dos seres e dos tempos. Inventei enredos, desenhei histórias, teci labirintos em todo verso para enfim achar o que sempre esteve aqui. É que viver sã estava lírico demais.

 

A realidade me arrebatou.

 

Deitada em seu colo, adormeço. É estranho e deliciosamente leve viver em paz.

 

Julio Bittencourt, Ramos, 2008

 

Julio Bittencourt, Daidokoro, 2013

 

Julio Bittencourt, Algumas coisas são perdidas para jamais serem encontradas, 2011

 

Julio Bittencourt, Citizen X, 2009

 

Julio Bittencourt é paulista, já ganhou vários prêmios, publicou alguns livros e tem trabalhos clicados entre o Japão, EUA e Brasil, dentre eles Daidokoro, Citizen X, Numa Janela do Edifício Prestes Maia, 911 e Ramos. Seus trabalhos retratam ruínas e abandono, tanto de um ponto de vista material, quanto humano. Suas imagens falam de despedidas, afetos e memórias que ficaram para trás. Resquícios de uma realidade real demais.

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David Hockney e a fotografia

O artista inglês David Hockney comemora seus 80 anos esse ano e vários museus pelo mundo estão celebrando sua vida e sua obra, incluindo o Pompidou em Paris que produziu uma retrospectiva com 160 obras, incluindo suas séries fotográficas.

Hockney sempre se interessou pela tecnologia da imagem, através da câmera fotográfica, celular, ipad e afins, ele experimenta inúmeros caminhos pelo universo visual que tanto o fascina. Como tema, ele se interessa pelo cotidiano e o simples – familiares, amantes, colecionadores, paisagens ao redor, objetos da casa – sem hesitar em homenagear, brincar e pegar emprestado estilos como o cubismo, o fauvismo, e elementos de artistas que ele admira como Matisse, Bacon, Picasso… Hockney desenvolve seu trabalho num estreito diálogo entre tecnologia, técnica, pintura e história da arte.

 

Eu acho que a fotografia também nos causou alguns danos. Nos fez ver tudo de uma maneira similarmente chata. Vivemos numa época em que um vasto número de imagens produzidas não se proclamam arte. Elas declaram algo muito mais dúbio. Elas se declaram reais.  – David Hockney

 

 

Nos anos 70, ele começa sua série fotográfica de colagem chamada joiners (marceneiros), primeiro usando impressões de polaroid e depois negativo 35 mm, chegando até impressões a cores comerciais. Usando várias impressões de fotos de diferentes ângulos e momentos de um único assunto, Hockney organiza uma colcha de retalhos para criar uma única imagem final. 

 

Se distanciando da perspectiva clássica induzida pelo olhar da câmera, Hockney experimenta com outras visões espaciais e temporais, dialogando com o movimento, com os diferentes pontos de vistas do cubismo e com a filosofia bergsoniana. A fotografia ganha uma dimensão mais alargada, se expande de tal forma que permite ao espectador uma percepção de uma realidade múltipla que nos é apresentada como resultante de diversos instantes. Cada pequena imagem que compõe o joiner surge um novo olhar, uma nova realidade.

Como dizia o filósofo francês Henry Bergson, nós não apreendemos a vida de maneira sucessiva e instantânea, mas ao contrário, em fluxo contínuo.  Com suas inúmeras imagens que compõe uma imagem única, Hockney torna o tempo visível, ou seja, ele mostra ao espectador as mudanças, o fluxo do tempo. Ele nos tira da sucessão de instantes cortados, para com a profusão deles, nos colocar dentro de diferentes momentos de espaço e tempo. Nossa percepção clássica do espaço exterior é quebrada e o movimento de seus joiners nos envolve com o movimento dos elementos em cena, incluindo tempo e espaço. 

 

E aqui estamos dialogando com a fotografia e não com o cinema, pois o referente se coloca diante da câmera, sem atravessa-la. E em cada imagem, nossa visão é forçada a perceber cada detalhe, num movimento de acumulação contínua da totalidade do tempo, desvendando o que Bergson chamava de duração.

 

 

*a exposição David Hockney – une retrospective fica em cartaz no Centre Pompidou em Paris até dia 23 de outubro de 2017.

 

 

 

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Fotografia e Poesia

Fotografando

 

Hoje essa delícias do banal me lembram

quando eu te amava à distância –

trope galope de dois cavalos pelo mato

abro o livro do dever muito depressa

sacudo as folhas do alto da cabeça

e cai um aviso, mania de segredamento

“naquele dia…”

Lampejei.

 

– Ana Cristina Cesar

 

 

Felipe Fittipaldi, Eustasia

 

 

Como rasurar a paisagem

 

A fotografia

é um tempo morto

fictício retorno à simetria

 

secreto desejo do poema

censura impossível

do poeta

 

– Ana Cristina Cesar

 

 

Felipe Fittipaldi, Eustasia

 

Felipe Fittipaldi, Eustasia

 

*Ana Cristina Cesar foi uma poetisa brasileira da década de 70 e 80 muito importante para o movimento da Poesia Marginal. Homenageada na Flip 2016, ela ganha uma fotobiografia organizada por Eucanaã Ferraz e produzida pelo IMS: Inconfissões: fotobiografia.

 

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