Tenho me interessado muito, ultimamente, pela relação da fala e do silêncio. E quando a gente se interessa por algo, não sei se o universo conspira ou a gente fica mais atenta, mas inúmeras fontes sobre o assunto chegaram até mim, entre podcasts, livros e revistas.
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Na verdade o silêncio já foi quase meu tema de doutorado. Pesquisei um pouco na época do mestrado através das imagens de Hiroshi Sugimoto e depois queria levar mais a fundo no doutorado – mas o projeto acabou não se concluindo (ainda). Influenciada pela filosofia oriental e pelo zen budismo, naquela época via o silêncio como uma pausa, um momento mágico para entrar em contato com a subjetividade. Ele não era visto como vazio mas como um momento pleno.
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As imagens de Hiroshi Sugimoto exemplificam bem esse silêncio que resumo aqui muito rapidamente. Imagens silenciosas que nos fazem olhar para dentro e nos libertar.
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Mas o silêncio também pode ser nefasto. O dominador usa o silêncio de sua vítima para dominar. E aqui falar se torna libertador. A linguagem, seja ela qual for, tem um enorme poder. Não é por acaso que grande parte da luta feminista passa pela linguagem: fomos caladas durante muito tempo.
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“Tem coisas que vimos na infância e adolescência que não conseguimos falar. E no momento que traduzimos essas lembranças no trabalho fotográfico, é como se estivéssemos nos liberando de tudo que guardamos calado dentro de nós”. – Thandiwe Msebenzi
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Imagens como as de Thandiwe Msebendi (que já foi discutida aqui), de Lucero Alomía, de Rodrigo Pinheiro e tantxs, tantxs, tantxs, outrxs exemplificam para mim o lugar de fala. Mais do que uma “expressão da moda”, é importantíssimo habitar a sua fala, a sua linguagem e não se calar. Não tenho respostas, apenas reflexões em andamento. Como acrescentou o fotógrafo José Roberto Bassul, que trabalha com o silêncio em suas imagens: “silêncio e fala não estabelecem uma dicotomia mas uma complementaridade. Assim como o discurso antecede a ação, o silêncio prenuncia a fala. É um refugio mas também uma instância de reflexão crítica”.
Esse mês colaborei com a revista francesa Fisheye em uma reportagem especial sobre a fotografia na América Latina. Após uma introdução geral sobre os fotógrafos tradicionais do continente, a revista escolheu 11 jovens fotógrafos para fazer um apanhado da nova produção latino-americana. Um repertório sobre alguns dos mais importantes locais dedicados à fotografia também está disponível ao fim da edição.
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Graças a minha colaboração com a revista conheci o trabalho da fotógrafa argentina Luján Agusti. De origem da Patagônia, uma terra de limites e passagem, ela trabalha sobre identidades. Em sua série “Palhaços de Coatepec”, por exemplo, ela trabalha com um antigo ritual mexicano da época da colonização espanhola. Um trabalho que fala da formação identitária de um país colônia e sua situação hoje. Qual a identidade contemporânea desse povo precário? Luján trabalha o humano.
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Sua série “54°48´26´´S 68°18´16´´O”, sobre Ushuaia, fala da capital da Terra do Fogo, cidade que vive um isolamento natural e ao mesmo tempo é invadida de turistas. Qual a identidade desse povo solitário, dependente da natureza e de uma economia instável? Em outra série ainda, “Salve sua Alma”, Luján perpassa memórias da perda de sua mãe com rituais religiosos mexicanos. Uma busca por sua própria identidade.
Parte do coletivo Prime de fotografia e da IWMF que apoia o trabalho de mulheres fotógrafas, Lujan ganhou uma bolsa de estudos da « National Geographic Society » e foi escolhida como uma jovem talento pelo programa « 6×6 Global Talent Program of World Press Photo ». Aproveito para dividir com vocês uma pequena entrevista que fiz com ela, além de suas imagens, claro.
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Qual é a sua formação fotográfica?
Inicialmente estudei História da Arte na Universidade de Buenos Aires. Depois estudei fotografia três anos na Andy Goldstein School em Buenos Aires também. Finalmente fiz o Seminário de Fotografia Contemporânea no Centro de la Imagen, no México, com sede na Cidade do México e em Oaxaca. Enquanto isso, sempre realizei diferentes workshops desde de processos de desenvolvimento artesanal até outros relacionados ao fotojornalismo, como o Eddie Adams, nos Estados Unidos.
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O que fez você escolher a fotografia como uma forma de expressão?
Eu sempre fui ligada à arte de uma forma ou de outra, passei pela pintura e pela história da arte. A imagem fotográfica apareceu no meu caminho quando eu era adolescente. Aquela fase difícil de expressar em palavras muitas coisas ao redor. Acabou tornando-se a minha maneira de me relacionar com o mundo ao meu redor. E, até hoje, é a minha maneira de entendê-lo.
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Você trabalha entre a Argentina e o México, que relação visual de semelhança e diferença você experimentou entre esses dois países latino-americanos? E de que maneira essas relações são mostradas em seu trabalho?
Eu sempre penso muito que, embora os dois países sejam latino-americanos, há muitas diferenças entre um e outro. Particularmente com a Patagônia, que é de onde eu sou. Enquanto no México muitas tradições e culturas ancestrais estão vivas, no sul da Argentina, o território e a cultura original foram devastados. Nesse sentido, no México, tenho me interessado em explorar os caminhos das tradições pré-hispânicas, enquanto na Patagônia tento contar histórias do que foi perdido ou corre o risco de desaparecer. Em ambos os casos, o que quero é abordar os problemas da minha região e atingir o olhar daqueles que, de outra forma, nunca os veriam.
Conte um pouco sobre a sua série “Salve sua alma”. Como se deu a idéia e como foi o processo?
Este trabalho começou como meu projeto de estudo no Centro de Imagem. Vindo de um contexto bastante não-religioso, fiquei muito impressionada ao vir ao México e ver a presença do espiritual tão forte na vida diária das pessoas, e os muitos caminhos que isso pode levar. Comecei então a visitar lugares diferentes na Cidade do México e comunidades em vários estados do país, onde diferentes práticas relacionadas à fé eram realizadas. E isso sempre me surpreendeu. O México é como muitos universos diferentes dentro de um mesmo território. O projeto durou quase três anos, mas sofreu muitas mutações até receber a forma final.
No início era um projeto documentário. Mas aos poucos este projeto se transformou em uma busca pessoal. Procurei encontrar minhas próprias respostas. Em algumas situações quase encontrei, em outras não, e em muitos momentos tive medo, porque coisas muito intensas estavam em jogo.
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Religião e crenças é um tema bastante simbólico e também muito trabalhado por outros fotógrafos na América latina. Como você decidiu explorar esse tópico?
Minha maior referência foi a estética que sai desses mundos. Além disso, eu tinha muitas referências de trabalhos artísticos e da literatura que me ajudaram a construir visualmente o projeto.
Também trabalhei de duas maneiras, um lado mais “documental”, o que para mim estava mais próximo da realidade, digamos, do que vi com meus próprios olhos. E a parte do projeto que tem a ver com sensações, com crenças, com o que não vemos, trabalhei de forma mais simbólica. Tomei como referência as amarras, ou o uso do vermelho, ligado ao sangue, ao diabólico, e ao amor.
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Sua série “Salve sua Alma” tem uma forte presença feminina. A representação da mulher é uma questão na sua prática fotográfica?
Sim, questiono e reflito muito sobre a representação e o papel das mulheres na cultura latino-americana. Tanto atrás, quanto na frente da câmera. Nós temos enormes dificuldades, mas somos muitas agora para mudar isso. Nesta série em particular, é muito interessante ver como a mulher, ou o feminino, está sempre associada à desgraça, ao condenado. A figura da mulher como a culpada dos males da humanidade é repetida intensamente.
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Quais seus próximos projetos?
Atualmente estou trabalhando na Terra do Fogo graças a uma concessão da National Geographic, em um projeto sobre a vegetação local (as “turfeiras fueguinas”). A sua exploração está muito ligada à dinâmica social da região, e trouxe, entre outras coisas, o genocídio dos povos nativos, pelo uso e abuso de recursos naturais locais.
Já falamos de mulheres e fotografia aqui antes, e as disparidades de gênero no nosso meio. Dia 2 de setembro de 2018, um grupo de fotógrafas publicou uma carta no jornal francês Libération para o diretor das Rencontres d’Arles, Sam Stourdzé, um dos maiores festivais de fotografia. As fotógrafas reivindicam apenas o básico: mais representatividade. De 49 edições do festival, 47 tiveram diretores homens, o total de mulheres artistas exibidas por edição não ultrapassa o total de 20%. E esse ano, de 15 exposições oficiais do festival, 13 eram homens, e apenas 3 mulheres.
Esse exemplo é francês mas está arraigado pelo mundo. No Brasil, ano passado, mulheres fotógrafas também se revoltaram contra a pouca representatividade de um grande festival no estado do Rio de Janeiro. Foi bom, porque abriu os olhos dos organizadores que chamaram mulheres para comissão e que esse ano abriram o Festival com uma fantástica fotógrafa mexicana, Flor Garduña, e concluíram com a fotógrafa Maureen Basilliat. O Paris Photo também apurou seu olhar este ano e escolheu o trabalho da fotógrafa negra Mickalene Thomas para ilustrar a capa e cartazes de sua edição 2018.
Mickalene Thomas, Lição de amor, 2008
O argumento é sempre o mesmo: que eles não se preocupam com a pessoa do artista mas com a qualidade das imagens. Que os perversos somos nós. Mas que coincidência, no final da seleção, eles se deparam apenas com artistas homens. Imagens de si mesmos. É um espelho no qual eles se olham e se admiram. Mas ao remover o espelho de suas mãos, o que sobra é o real impacto de suas práticas sobre os artistas. O que é necessário entender é que o caminho que o trabalho artístico de uma mulher tem que percorrer até a mesa de seleção do diretor de um festival, ou de uma galeria, para poder ser selecionada, é muito mais tortuoso do que o de um homem. Infelizmente, não há exagero nesta afirmação mas experiências vividas, testemunhos e análises sociológicas.
E a palavra para definir isso tudo está no dicionário: descriminação!
Em mais de 150 anos, houve um grande número de mulheres fotógrafas – conhecidas em seus dias – que desapareceram completamente da cena. Houve um processo lento e poderoso de invisibilização dessas mulheres pelos homens. – Marie Robert, curadora do Museu D’Orsay
Flor Garduño, Mulheres Fantásticas, 2007
Falar é necessário: quebra o silêncio e os antigos paradigmas, muda o status quo e trás um novo pensamento e mudanças estruturais. E gritar um pouco também faz bem! E para mudar é tão simples, basta começar. Expor mais artistas mulheres, em igualdade. E não basta inventar exposições e prêmios femininos específicos, isso só aumenta o problema. Não podemos nos contentar com espaços limitados de representação que continuam contribuindo para a separação da produção artística por gênero. É uma saída a curto prazo, uma tentativa valida mas que não atinge a raiz do problema.
O público quer novos nomes, novos olhares, as artistas tem condições e qualidade artística de sobra, o mercado virá atrás rapidamente. O que falta? Apenas os homens agirem e sairem de seus argumentos narcísicos*.
Verdade seja dita, estava super sem criatividade para o texto desta semana. Não vi nenhuma exposição imperdível de fotografia, nem fui a nenhum bate papo incrível de um fotógrafo inusitado ou me deparei com questões filosóficas intrigantes. Aí sento para escrever e o pensamento voa para qualquer outro lugar, menos o fotográfico: tô precisando emagrecer, não fui correr ainda essa semana… E aí, faz como? Come uma torta gigante? Desiste? Não! Nunca! Pesquiso com mais afinco na internet e nas minhas anotações, enquanto tento manter o diálogo interno com meus pensamentos revoltos. É quando descubro o novo trabalho da fotógrafa londrina Juno Calypso. Pronto: junto a fotografia, a ideia para o post da semana e aquieto minhas preocupações estéticas femininas.
A artista Juno Calypso trabalha sobre a representação do feminino, suas expectativas, demandas e limites na nossa cultura ocidental. Já destaquei aqui o último trabalho dela, “The honeymoon” de 2015.
Sua nova série, “What to do with a million years” (o que fazer com um milhão de anos), acaba de estrear em Londres, na galeria TJ Boulting, e é extremamente intrigante. Começa pela escolha da locação irreal (como Juno costuma gostar). Juno fotografou na casa subterrânea do criador da linha de cosméticos Avon, Jerry Henderson, construída em 1978, durante a guerra fria, como misto de mansão luxuosa e bunker esconderijo. Situada no estado de Nevada, nos EUA, a casa real, de 1500 metros quadrados parece saída de um cenário de ficção científica. Juno ficou algumas semanas hospedada nesse “cenário”, onde moraram Jerry e sua mulher Mary, que conta com uma falsa área externa com iluminação de amanhecer e entardecer, quartos, cozinhas e salas rosas, banheiros imaculados… Toda a estética e modo de ser desta casa são pensados em relação à preservação da vida e da beleza.
Juno Calypso, “What to do with a million years?”, 2018
Juno Calypso, “What to do with a million years?”, 2018
Imagine viver para sempre. O que você faria? Como você se sentiria? – Juno Calypso
Praticamente vivendo em um mausoléu contemporâneo, longe de qualquer perigo mas isolado também, Juno retoma alguns temas caros a sua pesquisa fotográfica. Ela mais uma vez nos mostra os tênues limites entre ambientes reais com pinceladas surreais que exacerbam o extremo que podemos fazer em prol de uma suposta perfeição. Seja em suites rosas de moteis americanos, salões de beleza, ou bunkers luxuosos, Juno mostra, com uma certa ironia e um humor negro, a nossa busca pelo “ideal” feminino, onde as mulheres com suas máscaras de beleza parecem mais o assassino “Hannibal Lecter” do que mulheres reais. Em prol de uma perfeição construída e pensada por uma cultura machista, o feminino se transforma em um extraterrestre.
Se usando mais uma vez de modelo, Juno mostra os absurdos que passamos para nos preservar bonitas, jovens e perfeitas. Uma tensão óbvia é sentida nas imagens: na jornada de auto-preservação, em uma casa imaculada, sufocada por uma obsessão de perfeição, onde o tempo para, o que vemos é solidão e morte. O mais sinistro é que suas metáforas são reais demais, palpáveis demais.
(em suas imagens) você não está sendo ameaçada por uma violência física, mas pela perspectiva de viver para sempre. E isso é muito mais sinistro. – Eddy Frankel
Juno Calypso, “What to do with a million years?”, 2018
a exposição de Juno Calypso, “What to do with a million years”, fica em cartaz em Londres até dia 23 de junho de 2018.